20 anos de liberdade e desilusão na África do Sul
1 de agosto de 2014 Estreitas ruelas de terra batida, onde é impossível circular de automóvel, separam inúmeras casas de chapa, onde famílias sobrevivem sem condições mínimas.
“Se dessem às pessoas água e eletricidade já seria bom. Quanto às casas, não importa, já vivemos nestas barracas há muitos anos e isso não nos preocupa”, aponta um dos líderes do assentamento informal de Zenzele.
Nos pontos de convergência de algumas ruelas surgem furos de água ilegais, que atendem as necessidades de várias famílias. E apenas as fogueiras iluminam e aquecem a noite da comunidade de Zenzele, um dos assentamentos informais mais pobres de Daveyton.
Estabelecida nos anos 1950, Daveyton foi pensada e planeada para se tornar uma township de referência a todas as outras da África do Sul. As townships são áreas residenciais urbanas criadas durante o regime de segregação racial de apartheid e reservadas a pessoas não brancas, sobretudo aos negros.
As townships eram construidas na periferia das cidades, pois as áreas centrais estavam reservada à comunidade branca. Daveyton surgiu nas imediações de Benoni, cidade situada cerca de 30 km a leste de Joanesburgo.
Na década de 1970, Daveyton era a única township na África do Sul com eletricidade, água canalizada e saneamento. Era limpa e tinha as principais ruas pavimentadas a alcatrão. Tornou-se um exemplo aos olhos do regime de apartheid, e mesmo para a comunidade não branca era um local agradável para viver.
Crescimento sem rei nem roque
Mas com a queda do apartheid, em 1994, e o forte aumento populacional, Daveyton começou a crescer de forma desordenada e multiplicaram-se as áreas de ocupação ilegal como Zenzele.
“As pessoas não têm terreno onde construir as suas casas. E o que acontece é que invadem terras e constroem as suas barracas e acabam por se juntar muitas pessoas na nova habitação. As condições são más nesses lugares. Principalmente porque os presidentes das autarquias não os reconhecem e por isso não lhes dão acesso a eletricidade, saneamento e a água canalizada”, explica Midas Chawane, professor de História da Universidade de Joanesburgo.
Foi o que aconteceu no assentamento informal de Zenzele que, apesar de existir há 16 anos, ainda não é reconhecido pelas autoridades locais de Daveyton que, por isso, tardam em providenciar infraestruturas essenciais. Sem as mínimas condições, a população sente-se ignorada e até mesmo traída pelas autoridades locais.
Ettie Ngozo veio parar a Zenzele depois de ter sido “retirada à força pelos serviços municipais e pelas forças policiais” da sua antiga habitação. Agora partilha uma casa fria com outras duas famílias: “Faz muito frio aqui, tenho de estar constantemente a fazer lume para aquecer a casa. Tive um bebé há pouco tempo e ele está constantemente doente e mesmo eu também”, lamenta a sul-africana.
Moçambicanos em Zenzele
Apesar de não haver números oficiais, presume-se que cerca de 20 mil pessoas vivam na comunidade de Zenzele. A maioria dos habitantes são sul-africanos, mas lado a lado, partilhando a mesma vida de dificuldades, moram imigrantes africanos, como é o caso de Jorge Racelo.
"Fugiu de Moçambique durante a guerra civil, em 1987, e trouxe a mulher e os filhos para a África do Sul. Apesar das dificuldades do regime da época, Jorge diz que “estava bem” porque “não havia carência de emprego”. Agora, lamenta, “há falta de emprego”.
Um problema que abrange todo o país. No primeiro trimestre deste ano, o desemprego atingiu um quarto da população ativa da África do Sul.
Jorge Racelo faz trabalhos de carpintaria, mas gostava de ter a própria oficina. No entanto, os bancos não lhe concedem crédito. Face às dificuldades, Jorge Racelo já pensa em voltar para Moçambique.
“Prefiro ir trabalhar em Moçambique. Da última vez que estive lá, vi que a vida de lá é muito melhor do que cá. Já há trabalho lá. Há brancos que estão lá abriram muitas empresas e há muitos empregos”, constata Jorge Racelo.
Desilusões
O carpinteiro moçambicano assistiu à queda do regime racista do apartheid. Mas o acontecimento histórico não lhe despertou grandes expectativas. Ao contrário, aliás, da grande maioria dos sul-africanos, que sonhou com uma vida melhor, repleta de novas oportunidades outrora negadas.
Mas muitas expectativas saíram goradas. “Sinto que fomos traídos. Acho que nada aconteceu nestas duas décadas. Estamos a aguardar por uma vida melhor desde 1994. Não estamos satisfeitos.
Na minha opinião, estes 20 anos não valeram a pena porque continuamos na mesma, sem casas nem electricidade e ainda sem um emprego digno”, lamenta Patrick Martins encostado à sua barraca em Zenzele.
A desilusão dos sul-africanos estende-se muito para além da pobreza extrema da comunidade informal de Zenzele. Nas restantes áreas de Daveyton, a população vive em muito melhores condições. Mas os sonhos de 1994 não passam de mera lembrança.
“Isto está pior do que durante o apartheid. Por exemplo, antigamente limpavam-se as estradas, reparava-se a eletricidade nas ruas e as casas, mas hoje em dia não é nada disso”, queixa-se Thomas Sidiela que tem uma pequena mercearia no centro de Daveyton há mais de 20 anos.
Mal-estar com estrangeiros, principalmente asiáticos
Além disso, “o negócio corria bem até 1994. Mas depois das eleições, começaram a chegar estrangeiros à África do Sul e a fazer também negócio na nossa township. Pelo que o comércio caiu drasticamente”, acrescenta ainda o comerciante Thomas Sidiela.
Com a falta de emprego, muitas pessoas acabam por se dedicar ao comércio informal. E a concorrência aperta ainda mais com o estabelecimento de estrangeiros, provenientes de países asiáticos, principalmente do Paquistão e Bangladesh, que conseguem colocar os produtos no mercado a preços muito baixos.
Na sua loja, Mandla Mkgwanazi vê menos clientes e aponta o dedo aos responsáveis. “Depois de teres gasto todo o dinheiro que tens para começar um negócio como este, chegam então, 20 anos depois, os estrangeiros que vêm com muito dinheiro. E começam logo com dois ou três negócios que crescem como cogumelos”, afirma o comerciante.
Além disso, “eles chegam com a intenção de pressionar o nosso negócio, estabelecendo preços que são extremamente baixos, com os quais não é possível competir. Primeiro destroem a concorrência e quando já estamos em baixo, eles começam a subir os preços para níveis normais”, critica Mandla Mkgwanazi.
Apesar deste mal-estar entre sul-africanos e estrangeiros, principalmente asiáticos, Daveyton escapou até hoje à violência xenófoba. Em 2008, uma onda de ataques xenófobos alastrou-se da township Alexandra, na cidade de Joanesburgo, a toda a África do Sul. A primeira onda de violência que afetou o país desde as primeiras eleições democráticas, em 1994, provocou mais de 60 mortes.
A mão-de-obra estrangeira é, muitas vezes, mais vantajosa do que a local, em termos de custo para o empregador. E há hoje em dia profissões praticamente dominadas por estrangeiros.
Os moçambicanos são sempre bem-vindos
Em Daveyton, a concorrência faz-se sentir sobretudo no comércio, sector com pouca presença de moçambicanos.
“Os moçambicanos dedicam-se principalmente aos trabalhos mais duros como construção de casas, etc. Mas também podem ter negócios como o meu e não há problema, porque já estão cá há muito tempo. Não há xenofobia contra eles. Aceitámo-los. Os moçambicanos estão cá desde que lutávamos pela liberdade. Por isso, hoje celebramos juntos essa liberdade. Nós dizemos ‘a luta continua’ com eles”, sublinha o comerciante Mandla Mkgwanazi.
Na África do Sul desde 1993, o moçambicano Fernando Matiquina tem um pequeno negócio de fabrico de camas. Numa oficina modesta, com uma simples máquina de costura, Fernando faz três camas por dia. Olhando para trás, diz que os tempos piores já passaram: “O negócio não é assim 100%, mas posso dizer que está a 50%, porque não tenho muitos clientes e não abasteço as lojas”.
A liberdade não se reflete ainda na carteira
A economia sul-africana já conheceu mellhores dias. O Fundo Monetário Internacional prevê um crescimento do Produto Interno Bruto sul-africano de 2,3%, em 2014, mas no primeiro trimestre do ano o PIB contraiu 0,6%.
As dificuldades económicas contribuem para uma sociedade ainda mais desigual e desiludida. “A luta foi ganha no terreno político, mas temos ainda um longo caminho a percorrer em termos económicos. Economicamente há ainda uma grande desigualdade entre brancos e negros. E pouco mudou em termos de oportunidades de emprego e há ainda alguns trabalhos aos quais os negros não conseguem ainda aceder ou pelo seu background ou porque muitas das empresas são dirigidas por brancos que sempre protegem os seus no acesso a emprego”, sustenta o professor de História da Universidade de Joanesburgo, Midas Chawane.
Por isso, se por um lado “valeu a pena acabar com o apartheid, porque agora as pessoas já se conseguem identificar com o poder” e as pessoas são livres de se expressarem nas suas línguas locais, por outro, “a liberdade não se refelte nos bolsos das pessoas”, critica o comerciante Mandla Mkgwanazi..
“Vivemos na pobreza, 20 anos depois de termos democracia. A democracia está a beneficiar poucas pessoas, principalmente aquelas que estão ligadas ao poder do ANC [Congresso Nacional Africano - partido governamental]. Mas a generalidade do povo está ainda à espera dessa liberdade”, atira.
Mesmo 20 anos depois do fim do apartheid, cerca de um terço da população vive com menos de dois dólares por dia. O legado de pobreza do apartheid ainda está por resolver.