Entre 120 e 140 mil militares portugueses ainda sofrem de stress pós-traumático, 45 anos depois da guerra colonial em África. E muitos familiares também são afetados. Estudos ajudam a perceber melhor este problema.
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Quarenta e cinco anos depois da Revolução de 25 de abril de 1974 em Portugal, ainda há registos de traumas da guerra colonial em África, que mobilizou cerca de um milhão de homens e fez mais dez mil vítimas, além de ter causado cerca de 120 mil feridos e deficientes físicos.
Estima-se que 120 a 140 mil militares portugueses sofrem de stress pós-traumático. Desse número fazem parte os filhos dos ex-combatentes que cresceram rodeados de objetos e memórias da guerra deixados pela geração dos pais.
Filho de ex-combatente
Paulo Faria nasceu em janeiro de 1967. Quando se deu o 25 de abril de 1974 - a conhecida Revolução dos Cravos em Portugal - ainda era uma criança. Tem agora 52 anos e é um dos filhos de ex-combatentes portugueses que até hoje convivem com os traumas da guerra colonial em África, nomeadamente em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, entre 1961 e 1974.
"A guerra colonial esteve sempre presente lá em casa. Era o uniforme do meu pai que estava guardado e com o qual nós brincávamos e que mais tarde usei quando andava no liceu. Esse uniforme tinha um cheiro inconfundível que ainda hoje conserva ao fim de tantos anos", recorda.
Também brincavam inconscientemente com fotografias de guerra do pai, Mário Faria, que foi alferes médico em Moçambique, entre 1967 e 1969.
"E eram as histórias de guerra do meu pai, que ele contava. Só mais tarde é que começo a aperceber-me da importância que a guerra teve para ele".
25 de abril: Traumas da guerra colonial ainda persistem
Mas a maior parte dos veteranos nunca falou da guerra à mulher e aos filhos. Era uma experiência que não queriam partilhar. Quando Mário Faria morreu, em 2013, o filho decidiu falar com os veteranos que tinham estado com ele no Ultramar. Isso deu origem mais tarde ao romance, "Estranha Guerra de Uso Comum".
"A maior parte desses veteranos com quem falei disse-me que nunca falaram da guerra à mulher e aos filhos", explica. "Para eles, a guerra era uma experiência que eles não queriam partilhar".
Paulo Faria reconhece, entretanto, que na sociedade portuguesa ainda há traumas como reflexo da guerra colonial. "Esses traumas que eu tentei - e espero ter conseguido - ultrapassar pensando nas coisas e tornando-me, em certa medida, herdeiro da guerra colonial do meu pai estão presentes obviamente".
Estudo sobre traumas de guerra
Este tradutor e escritor faz parte de um grupo de filhos de ex-combatentes ouvidos por investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Num estudo iniciado em 2008, coordenado por Margarida Calafate Ribeiro, no âmbito do projeto "Filhos da Guerra Colonial e Pós-memórias Europeias", avaliam as marcas que a guerra deixou e, em particular, os traumas herdados pelos filhos no ambiente familiar.
A psiquiatra Luísa Sales, coordenadora do Centro de Trauma do Centro de Estudos Sociais, integra a referida equipa, explica como as memórias passam de geração em geração. "Os filhos dos homens que foram à guerra, uns já nascidos quando os pais partiram, outros nascidos anos após o regresso ou até após o final da guerra, guardam de facto memórias. Não só as memórias familiares, privadas, que vão constituir após memória da guerra colonial - aquilo a que podemos chamar uma memória de segunda geração - como guardam igualmente a capacidade de reelaborarem a partir das suas memórias, de objetos, de narrativas, guardam a capacidade de reelaborar esse período vivido pela geração dos pais".
A chefe de Serviço de Psiquiatria daquele centro acrescenta que estes filhos, já adultos, guardam sobretudo "uma acrescida vulnerabilidade ao trama psicológico, uma vulnerabilidade significativa ao desenvolvimento de sofrimento emocional e stress traumático".
"De facto, não só os filhos, mas também as esposas dos ex-combatentes que regressaram da guerra com trauma psicológico apresentam também elas um acrescido sofrimento emocional e uma maior vulnerabilidade ao trauma", sublinha ainda Luísa Sales.
Elas foram não só guardiãs privilegiadas de memórias privadas da guerra colonial, mas também vítimas de traumas secundários pelas ausências, perdas e dores. Por outro lado, acrescenta a especialista, foi também detetada uma acrescida vulnerabilidade ao sofrimento emocional nas mulheres dos homens que foram à guerra e trouxeram marcas traumáticas.
As mães tiveram uma importância determinante pelo papel que desempenharam ou ainda desempenham para fazer entender aos filhos as razões que levaram os pais a combaterem no Ultramar.
20 Anos de Paz em Moçambique: Uma viagem
A 4 de outubro de 1992, FRELIMO e RENAMO assinaram o Acordo Geral de Paz, pondo fim a 16 anos de guerra civil em Moçambique. Apesar da paz, a guerra civil continua a marcar a vida de muitos moçambicanos.
Foto: Marta Barroso
A guerra presente todos os dias
A 4 de outubro de 1992, FRELIMO e RENAMO assinaram o Acordo Geral de Paz, pondo fim a 16 anos de guerra civil em Moçambique. Apesar da paz, a guerra civil continua a marcar a vida de muitos moçambicanos. Joula estava grávida de oito meses quando uma mina anti-pessoal lhe arrancou um pé em 1991. Na noite anterior, a RENAMO tinha atacado a aldeia e plantado minas em redor.
Foto: Marta Barroso
De armas a enxadas... ou cadeiras
Desde 1996, o projeto "Armas em Enxadas" dá um novo destino ao material bélico que destruiu milhares de vidas durante a guerra civil. O objetivo da iniciativa, lançada pelo Conselho Cristão de Moçambique, é criar, com as armas, obras de arte com mensagens de paz. Muitas peças foram encontradas pelo país, outras foram recolhidas a privados.
Foto: Marta Barroso
Ataques inesperados
São as mesmas armas que há 20 anos eram usadas para atacar seres humanos como estes refugiados em Chamanculo, perto da capital, Maputo, em 1992. Chamanculo nunca recuperou da chegada de milhares de refugiados da guerra civil. Ainda hoje, é um bairro pobre. Foi aqui que nasceram figuras ilustres do país como Maria de Lurdes Mutola.
Foto: DW/Cristina Krippahl
Ruas desertas em Maputo
A guerra, que se arrastou por 16 anos, atrasou o desenvolvimento do país. Também a vida social sofreu, até mesmo na capital. Engarrafamentos eram, durante a guerra e nos primeiros anos seguintes, algo raro como se pode ver nesta fotografia do centro de Maputo de 1992.
Foto: DW/Cristina Krippahl
Filhos da guerra
Em 1990, Moçambique era considerado o país mais pobre do mundo. Em 2011, ocupava o lugar 184 entre 187 Estados no Índice de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, PNUD. 20 anos depois de assinada a paz, os moçambicanos continuam a viver, em média, 50 anos.
Foto: DW/Cristina Krippahl
Filhos da paz
20 anos depois do Acordo Geral de Paz, ainda há muito que fazer no combate à pobreza em Moçambique. As províncias do Niassa, de Maputo, Cabo Delgado e Tete (na imagem) são, segundo o Programa da ONU para o Desenvolvimento, PNUD, as que têm maior incidência de pobreza no país.
Foto: Marta Barroso
Casa de Espera
Iniciativas como esta na aldeia de Vinho, no Parque Nacional da Gorongosa, província de Sofala, contribuem para diminuir a mortalidade infantil e materna. Atualmente, em Moçambique cerca de 500 mães morrem por cada 100 mil crianças nascidas vivas. Para evitar que isso aconteça na aldeia de Vinho, a Casa de Espera assiste as mulheres grávidas das redondezas na preparação dos partos.
Foto: Marta Barroso
Economia dominada por megaprojetos
A paz possibilitou megaprojetos, como o da exploração de carvão em Moatize, Tete. De futuro, a esperança é de que os rendimentos destes projetos beneficiem mais a população. Devido aos incentivos fiscais de que gozam as multinacionais ligadas a eles, o Estado moçambicano deixa de ganhar mais de 200 milhões de dólares por ano, segundo o Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE).
Foto: Marta Barroso
Carvão, a euforia de Tete
74 toneladas de carvão já estão carregadas nesta transportadora que pode levar até 400 toneladas. O carvão da província central de Tete tem vindo a atrair investidores nacionais e internacionais à procura do "El Dorado" que tem limitado a diversificação da economia nacional na segunda década de paz em Moçambique.
Foto: Marta Barroso
Cahora Bassa...
Durante a guerra civil, as linhas de transmissão de Cahora Bassa foram alvo de ataques da RENAMO. Hoje, a barragem funciona em pleno. Cahora Bassa tem uma capacidade instalada de 2.075 megawatts, a maior parte da energia é exportada para os países da região: 70% para a África do Sul e 5% para o Zimbabué. Apenas um quarto da eletricidade aqui produzida é consumida em Moçambique.
Foto: DW/M. Barroso
... um elefante branco para esta área do país?
Ainda há poucas casas em redor de Cahora Bassa com acesso regular à eletricidade. Para o economista moçambicano Carlos Castel-Branco do IESE, dever-se-iam estender as bases do desenvolvimento do país às aldeias e vilas em torno da barragem para que também aqui a vida económica se transformasse num elemento de estímulo para o investimento.
Foto: Marta Barroso
Gentes ligadas
A reabilitação das infraestruturas permite agora uma maior mobilidade e fomenta o comércio interno. A linha férrea de Sena liga a província de Tete, no interior de Moçambique, à cidade portuária da Beira. No tempo da guerra civil, foi encerrada e acabou por ser completamente destruída. Nos últimos anos, o corredor ferroviário foi reabilitado para escoar sobretudo o carvão da região de Tete.
Foto: Marta Barroso
Gentes apertadas
O comboio é um dos meios de transporte mais baratos em Moçambique. Em fevereiro de 2012, a Linha de Sena abriu a passageiros em toda a sua extensão. A reconstrução foi feita por troços e acabou por tomar muito mais tempo que o previsto, porque o consórcio indiano responsável pelas obras não cumpriu diversos prazos. Grande parte do dinheiro veio do Banco Mundial.
Foto: Marta Barroso
Há esperança em Moçambique
Idalina Melesse viajou de comboio pela primeira vez em 2012. Durante a guerra civil, os ataques impediram-na de se mover dentro do país. Desde então e até à reabertura da Linha de Sena, não tinha tido dinheiro para longas viagens. A Linha de Sena e outras infraestruturas não só unem moçambicanos, mas devolvem-lhes a liberdade de movimento e a facilidade de comunicação confiscadas pela guerra.