Ruanda assinala 26 anos do genocídio com limitações
mjp | com agências
7 de abril de 2020
Com as medidas em vigor para conter a pandemia de Covid-19, ruandeses prestam homenagem às vítimas a partir de casa, pela primeira vez em 26 anos. "Só muda a forma como o fazemos", garante o Presidente Paul Kagame.
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Todos os anos, a 7 de abril, o Ruanda junta-se para recordar as vítimas do genocído de 1994. Neste dia, há 26 anos, tinha início um dos períodos mais negros da história da Humanidade: o massacre de mais de 800 mil pessoas da minoria tutsi e hutus moderados às mãos de hutus radicais, durante uma centena de dias, perante a inércia da comunidade internacional.
Este ano, dadas as medidas em vigor para conter a pandemia de Covid-19, as cerimónias têm uma assistência muito limitada e obedecem a diretrizes específicas. O Ruanda foi um dos primeiros países africanos a entrar em bloqueio total para travar o novo coronavírus e o Governo destacou polícias e militares para garantir que a população fica em casa.
Os ruandeses estão a acompanhar pela televisão e nas redes sociais as cerimónias dos 26 anos do genocídio, que arrancaram esta manhã, com a deslocação do Presidente Paul Kagame ao Memorial do Genocídio em Kigali. O chefe de Estado acendeu a Chama da Recordação, que ficará acesa durante 100 dias.
Pela primeira vez, o Governo cancelou os tradicionais desfile (Walk to Remember, em português, a Marcha para Recordar) e a vigília noturna no estádio nacional, dois dos eventos mais marcantes das cerimónias anuais. A Comissão Nacional para a Luta contra o Genocídio também suspendeu as visitas aos memoriais do genocídio.
A Comissão anunciou que a marcha será substituída por um programa de televisão e a vigília noturna pela transmissão de histórias de sucesso de sobreviventes em vários meios de comunicação. Segundo a imprensa local, as comemorações deste ano centram-se no impacto da digitalização dos registos históricos do genocídio e no papel da juventude na luta contra a negação e ideologia do genocídio.
"Estas circunstâncias invulgares não nos vão impedir de cumprir a nossa obrigação de recordar os que perdemos e consolar os sobreviventes. Só muda a forma como o fazemos", disse o chefe de Estado ruandês, numa mensagem em vídeo.
O rastilho do massacre da minoria Tutsi data de 6 de abril de 1994, quando um avião que transportava o Presidente Juvénal Habyarimana foi abatido em Kigali, matando o líder que, como a maioria dos ruandeses, pertencia à etnia Hutu. Os tutsis foram culpados pela queda do avião e extremistas hutus mataram milhares de pessoas, incluindo crianças, com o apoio do exército, polícia e milícias, durante 100 dias.
Agora, Kigali recorda as vítimas em silêncio. As ruas estão desertas, numa altura em que o Ruanda tem 105 casos confirmados do novo coronavírus e o Governo prolongou o bloqueio por duas semanas.
Garantir enterros dignos
É neste cenário que o Ruanda está a proceder à exumação de 30 mil cadáveres de vítimas do genocídio, no distrito de Kayonza, no leste do país. Até ao momento, foram recuperados 50 restos mortais, enterrados debaixo de um pântano, adiantou Naphtal Ahishakyiye, porta-voz da organização governamental Ibuka, que reúne sobreviventes do genocídio.
"Recebemos informação em setembro de que cerca de 30 mil corpos foram atirados para esta área, mas, devido às características do terreno, não pudemos exumá-los até conseguimos secar o pântano", justificou, em declarações à agência espanhola Efe.
O processo de exumação levará vários meses a estar concluído e a entrega dos restos mortais aos familiares das vítimas vai acontecer em diferentes momentos.
Esta é a descoberta de vítimas do genocídio no Ruanda mais significativa dos últimos anos. O Ruanda continua empenhado em garantir um enterro digno aos tutsis e hutus moderados que foram massacrados às mãos dos hutus radicais. A recusa dos autores do genocídio em fornecer dados sobre a localização das vítimas tem adiado os trabalhos de exumação, segundo o Governo.
O novo coronavírus está também a dificultar os trabalhos, segundo Naphtal Ahishakyiye: "Exumar corpos durante a pandemia de Covid-19 é um grande desafio, porque as pessoas não se podem reunir", explicou. "Mas estamos a dar o nosso melhor para darmos um enterro digno aos mortos".
O genocídio no Ruanda
O genocídio no Ruanda, 25 anos atrás, em 1994, chocou o mundo. Na época, a comunidade internacional assistiu de braços cruzados – sobretudo a França e a ONU – ao assassinato de cerca de 800 mil pessoas.
Foto: picture-alliance/dpa
O pontapé do genocídio
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que viajava o então Presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi derrubado por um foguete quando se aproximava da capital Kigali. O atentado matou Habyarimana, o Presidente do Burundi e outros oito ocupantes da aeronave. No dia seguinte, começam os massacres, que duraram três meses e custaram a vida de pelo menos 800 mil ruandeses.
Foto: AP
Vítimas escolhidas a dedo
Depois do assassinato do Presidente, extremistas hutus começaram a atacar membros da minoria tutsi e hutus moderados. Os assassinos estavam bem preparados e escolhiam suas vítimas entre ativistas de direitos humanos, jornalistas e políticos. Entre as primeiras vítimas, no dia 7 de abril de 1994, estava a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana.
Foto: picture-alliance/dpa
Resgate de estrangeiros
Enquanto nos dias posteriores milhares de ruandeses eram mortos diariamente em Kigali e no interior, forças especiais belgas e francesas retiraram do país cerca de 3.500 estrangeiros. Paraquedistas belgas resgataram em 13 de abril os sete funcionários alemães da Deutsche Welle em Kigali, juntamente com suas famílias. Apenas 80 dos 120 empregados locais da emissora sobreviveram ao genocídio.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Grito de socorro
Já no início de 1994, o comandante das tropas de paz da ONU, o canadense Roméo Dallaire, tinha indícios de um planejado extermínio da população tutsi. Sua mensagem à ONU, conhecida como o "fax do genocídio", enviada em 11 de janeiro, foi rejeitada. Os apelos posteriores do general durante o genocídio também foram ignorados pelo então chefe das operações de manutenção da paz, Kofi Annan.
Foto: A.Joe/AFP/GettyImages
Mídias do ódio
O filme "Hate Radio", do diretor suíço Milo Rau (foto), lembra a estação Radio Mille Collines (RTLM) que, junto ao jornal semanal "Kangura", incitava o ódio contra os tutsis. Kangura, por exemplo, publicou já em 1990 os "Dez mandamentos hutus", com alto teor racista. A Mille Collines, popular pela música pop e pela cobertura desportiva, fazia chamadas diárias pela perseguição e morte de tutsis.
Foto: IIPM/Daniel Seiffert
Refúgio no hotel
Em Kigali, Paul Rusesabagina escondeu mais de mil pessoas no Hotel des Mille Collines. Depois que o gerente belga deixou o país, Rusesabagina o sucedeu no cargo. Com muito álcool e dinheiro, ele conseguiu impedir as milícias hutus de matar os refugiados. Em muitos outros refúgios, as vítimas não conseguiram escapar de seus assassinos.
Foto: Gianluigi Guercia/AFP/GettyImages
Massacres em igrejas
Mesmo igrejas, onde muitos buscaram refúgio, não foram respeitadas. Cerca de 4 mil homens, mulheres e crianças foram mortos na igreja de Ntarama, perto de Kigali, por assassinos portando machados e facões. Hoje, a igreja é um dos muitos memoriais do massacre. Crânios e ossos humanos, além de buracos de bala nas paredes, lembram até hoje o genocídio.
Foto: epd
O papel da França
Paris manteve laços estreitos com o regime hutu. Quando os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) já tinham ganhado terreno sobre os autores de genocídio, em junho, o Exército francês entrou em ação. E permitiu que soldados e milicianos responsáveis pelo genocídio fossem com armas para o Zaire, atual República Democrática do Congo, onde representam até hoje uma ameaça para o Ruanda.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Fluxo de refugiados
Durante os massacres, milhões de ruandeses, tutsis e hutus, fugiram para os países vizinhos Tanzânia, Zaire e Uganda. Só no Zaire (hoje RDC), foram dois milhões de refugiados. Ex-membros do Exército e os autores de massacres fundaram as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda, que são até hoje um fator de insegurança no leste congolês.
Foto: picture-alliance/dpa
Tomada de Kigali
Diante da Igreja da Sagrada Família, em Kigali, patrulham em 4 de julho de 1994 rebeldes da RPF. Nessa época, eles já haviam libertado a maioria das regiões do país e forçado os assassinos a baterem em retirada. Ativistas de direitos humanos se queixam, no entanto, que os rebeldes também cometeram crimes pelos quais ninguém foi responsabilizado até hoje.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Fim do genocídio
O general Paul Kagame, líder da RPF, declarou em 18 de julho de 1994 o fim da guerra contra as forças do Governo. Os rebeldes assumiram o controlo da capital e outras grandes cidades. A princípio, empossaram um Governo provisório. Desde o ano 2000, Kagame é o Presidente do Ruanda.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Cicatrizes permanentes
O genocídio durou quase três meses. A maioria das vítimas foi brutalmente assassinada com facões. Vizinhos mataram vizinhos. Cadáveres e partes de corpos de bebés, crianças, adultos e idosos se amontoavam ao longo das ruas. Poucas famílias foram poupadas. Não só as cicatrizes nos corpos dos sobreviventes mantêm viva a memória do genocídio.