27 de maio de 1977 em Angola
31 de maio de 2012Hoje, William Tonet é um dos poucos jornalistas que escreve sobre o 27 de maio em Angola. A DW África falou com ele e começou por abordar os antecedentes.
DW África: O que aconteceu, por exemplo, com Matias Miguéis, então vice-presidente que havia abandonado o MPLA por dissidências, tendo-se filiado na FNLA [a Frente Nacional de Libertação de Angola] em 1965?
William Tonet (WT): Naturalmente, não foi pacífica a chegada do presidente Agostinho Neto ao MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola]. Por aquilo que se conhece da nossa história, enquanto movimento de libertação, o MPLA era, de facto, no ano [de 1960] um movimento congregador e que tinha uma direção mais ou menos colegial, portanto, com a chegada de Agostinho Neto, que foi convidado para liderar o movimento, é o início de uma série de dissidências: Agostinho Neto, em vez de se constituir como elemento congregador, foi um elemento divisor.
É com Agostinho Neto que surgem os grandes movimentos de dissidências. Tivemos, de facto, o caso horripilante do vice-presidente Matias Miguéis. Ora, nós sabemos que Agostinho Neto foi preso nas condições em que foi preso, ele não havia sido torturado como ele veio a torturar aquele que foi vice-presidente [Matias Miguéis] e que mais se bateu para a sua libertação das mãos do jogo colonial português. Matias Miguéis, por ordens expressas de Agostinho Neto foi preso, enterrado vivo com a cabeça de fora cerca de 48 horas. Depois disso, não resistiu. E era humilhado, uns [urinavam-lhe] na cabeça, outros cuspiam, outros pontapeavam, [algo] que até o próprio colonialismo não havia feito a angolanos que tinham um dedo de testa. E um exemplo é o próprio Agostinho Neto.
DW África: O que aconteceu com a chamada revolta de leste, um grupo de guerrilheiros do MPLA do leste de Angola que não concordou com a política da ala de Agostinho Neto?
WT: É preciso esclarecer que, no MPLA, nós nunca tivemos uma revolta do leste. Tivemos esse movimento de 65, depois tivemos um outro movimento em 66, em que houve uma queimada de pessoas acusadas de feitiçaria e que [supostamente] estavam a tentar derrubar o presidente Agostinho Neto em Brazzavile [República do Congo]: à cabeça temos o comandante Paganini, mas houve um movimento que é a "rebelião da jibóia", comandada por Katuwe Mitwe, que foi uma reivindicação de guerrilheiros.
Ora, quem foi fazer o inquérito na frente leste foi o então outro vice-presidente, Daniel Júlio Chipenda e, chegado lá, ao abordar o comandante Katuwe Mitwe e a direção, perguntou se aquilo era mesmo uma rebelião – porque rebelião [acontece quando] alguém que se confronta de fora para dentro – e se eles achavam ainda que eram do MPLA e que reivindicavam apenas uma determinada situação. E a maioria das pessoas disse que, de facto, se tratava de uma revolta.
Já havendo revolta ativa, por analogia, sugeriu-se que, em vez de ser a rebelião da jibóia – porque afinal era uma reivindicação face a determinadas políticas da direção, até porque era no leste – ficasse revolta do leste. Portanto, foi uma sugestão então avançada pelo vice-presidente que foi o coordenador da comissão de inquérito sobre a rebelião da jibóia.
DW África: Muitos dos protagonistas do 27 de maio eram militares da chamada Primeira Região Militar. O que diz sobre os que lutaram contra o colonialismo português em Luanda?
WT: É preciso distinguir que não eram só militares que integravam o movimento contestatário. O MPLA configurou-se como um partido, um movimento que englobava e respeitava várias tendências. Mas depois começou a ter um cariz muito mais ditatorial, de abafamento. Basta ver que o comandante Nito Alves – que era uma pessoa [até das mais comprometidas] com a ideologia comunista – batia-se por algumas situações que estavam muito próximas de Agostinho Neto. Ora, foi graças a uma estratégia do comandante Nito Alves que o presidente Agostinho Neto não perdeu completamente a direção do MPLA.
Portanto, se houver honestidade política e intelectual das pessoas, e um dia que a história do MPLA [seja] feita despida de paixões, veremos que o primeiro presidente democraticamente eleito na história do MPLA foi Daniel Júlio Chipenda no Congresso de Lusaka. Então, no próprio movimento do 27 de maio, tínhamos o comandante Nito Alves, mas temos logo a secundar o Zé Van Dúnem. O Zé Van Dúnem é da luta clandestina, não provém verdadeiramente da guerrilha, era um preso político de S. Nicolau, a Sita Valles também, portanto nós temos um conjunto de gente que não eram elementos da guerrilha.
O que se pretendia era que houvesse uma clarificação ideológica, não é possível que um movimento de libertação que vinha lutando contra o colonialismo português, que falava contra o imperialismo norte-americano, que depois de 1974, o presidente Agostinho Neto tivesse ido para o Canadá negociar a manutenção dos americanos da Chevron nas plataformas petrolíferas, quando o principal [financiador] de então do MPLA eram os soviéticos e os soviéticos também eram uma potência em petróleo. Isto aconteceu, porque houve necessidade de alguns questionarem o rigor e a precisão da nossa corrente ideológica. O que é que iríamos seguir de facto? A esquerda comunista ou centro esquerda ou o liberalismo? E isso Neto não chegou a clarificar.
DW África: Falemos de Nito Alves. Qual era o modelo do poder popular que Nito Alves defendeu? Alguns investigadores dizem que o poder popular foi considerado uma ameaça a Agostinho Neto.
WT: É preciso repor a verdade histórica: o pai da criança não é Nito Alves. O próprio movimento tinha isso como elemento aglutinador e congregador das vontades para a luta de libertação. Basta [vermos as vezes em que a expressão "poder popular" foi usada] pelo próprio presidente Agostinho Neto. Se o poder reside no povo, era preciso que o povo estivesse presente em todos os atos.
Por outro lado, a materialização dessa orientação foi expressa numa resolução do próprio Conselho da Revolução e da própria direção do MPLA. O MPLA realizou eleições democráticas para os órgãos do poder local, poder popular local, portanto comissões populares eleitas. Ora, não podia haver uma expressão tão profunda, mas os atos serem distintos.
Se isso preocupava? Preocupava, porque, ao mesmo tempo que se prendia a expressão, as pessoas gostariam de continuar a nomear responsáveis eleitos pelas populações das comissões de bairro, dos municípios e aí [começaram] as contradições, porque alguns achavam que, pelo facto de terem vindo da mata, poderiam imediatamente ser responsáveis.
Aliás, quando se parou esse movimento de pendor comunista, nós vimos o que aconteceu. Nada mais evoluiu, porque pessoas que não estavam identificadas com as regiões, com os bairros, começaram a ser nomeadas e é o descalabro que ainda hoje nós vamos conhecendo.
Autor: Manuel Vieira (Luanda)
Edição: Marta Barroso/Johannes Beck