Como a Guerra do Biafra influencia a política nigeriana?
Katrin Gänsler
15 de janeiro de 2020
A guerra separatista no antigo Estado nigeriano do Biafra é conhecida como uma das maiores tragédias humanitárias do mundo. As causas do conflito permanecem vivas 50 anos depois do fim da guerra.
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Durante a guerra civil na autoproclamada República do Biafra, Uchenna Chikwendu era uma adolescente. Hoje, aos 67 anos, o moradora de Enugu - cidade que serviu de referência para a crise na época - raramente fala sobre o que testemunhou durante o conflito, que se estendeu de julho de 1967 a janeiro de 1970.
"Tínhamos de correr o tempo todo. Quem tinha um automóvel era obrigado a escondê-lo para que o Exército não o confiscasse. Nós chegávamos no supermercado às três da manhã e ficávamos lá até às cinco. Fazíamos as compras rapidamente, mas tínhamos de ter cuidado e nos proteger no caminho de volta", lembra Chkwendu.
A Nigéria é composta por mais de 250 grupos étnicos. À época, tinha população de mais de 45 milhões de habitantes - composta principalmente pelos povos hauçá e fula no norte, iorubá no sudoeste, e igbo no sudeste. O país tornou-se independente do Reino Unido em 1960, e conflitos internos foram gerados pela supremacia e acesso a recursos naturais.
O país viveu dois golpes de Estado em 1966. Generais leais a Johnson Aguiyi-Ironsi, um líder da etnia igbo, promoveram destituíram o primeiro-ministro Abubakar Tafawa Baleva - um líder do norte do país. Seis meses mais tarde, generais responderam as iniciativas de Aguiyi-Ironsi. Após graves motins étnicos, o governador militar da região sudeste, Chukwuemeka Odumegwu Ojukwu declarou o então Estado do Biafra independente em 30 de maio de 1967.
A Nigéria continua dividida
Essa foi a origem de uma guerra cujo número estimado de mortos está entre 500 mil e 3 milhões de pessoas. O professor de Política Comparada da Universidade de Ibadan, Eghosa Osaghae, diz que as questões que levaram ao conflito continuam abertas até hoje. "Como no passado, há o sul e o norte. Os eixos geopolíticos permanecem os mesmos", explica.
Após tantos anos, a identidade e o sentido de pertença são ideias abstratas demais para muitos nigerianos. "Como nigeriano, não sinto que pertenço [ao povo nigeriano] de forma alguma. Não há nada de que se orgulhar. Só estou feliz por ser igbo", explica Chikwendu.
Apesar de não ter um sentimento de unidade, o intercâmbio e a relação entre os grupos étnicos é intensa. Milhões de pessoas no país vivem em áreas diferentes das suas regiões de origem. O intercâmbio entre diferentes grupos étnicos sempre existiu e foi rapidamente retomado após a guerra. A força motriz dessa tendência é o comércio.
Muitos hauçá vivem ao longo da estrada Ogui, em Enugu. O líder (sarki) dessa comunidade é Abubakar Yussuf Sambo, cuja família deslocou-se do estado de Adamawa, no nordeste do país, para Enugu há cem anos. Sambo diz que nunca experimentou ressentimento étnico por ser hauçá. "Eu cresci aqui, andei aqui na escola. Eu tenho mais amigos em Enugu do que em Adamawa."
Luta por recursos
A política nigeriana é sensível. "Uma das razões para a guerra foi a questão do equilíbrio de poder no país. Atualmente, a luta pelo poder se intensificou", explica Osaghae. Segundo a cientista político, a guerra civil continua a moldar as relações dentro da Nigéria, e isso é visível na distribuição dos cargos políticos e nas principais autoridades do país.
No ano passado, o Presidente Muhammadu Buhari foi acusado de favorecer a região norte. Os principais partidos - o Congresso de Todas as Forças Progressistas (APC) e o Partido Democrata Popular (PDP) - preocupam-se ao selecionar seus candidatos presidenciais que representem o norte e o sul, o muçulmanos e cristãos.
Os originários de Biafra criticam o fato de até nunca um presidente igbo ter sido eleito na Nigéria. O sentimento de marginalização fortalece os defensores da independência. O movimento "Povo Independente de Biafra" (Ipob) ainda tem apoiantes, apesar de ter diminuído suas actividades após um tribunal tê-lo declarado "organização terrorista" em setembro de 2017.
Como a Guerra do Biafra influencia a política nigeriana?
A percepção difere da realidade
Segundo o Índice de Desenvolvimento Nacional de 2015, as regiões geopolíticas do sudeste e "sul-sul" [uma nomenclatura oficial de uma região que equivale ao Biafra] têm os índices mais altos de educação, igualdade de género e redução da pobreza. "Muitas pessoas do sudeste não conhecem de todo o norte. Eles pensam que o norte recebe a maior parte dos recursos", destaca Osaghae.
Na política externa nigeriana, a guerra deixou poucos vestígios. A autoproclamada República do Biafra foi reconhecida por poucos países na época – que incluíam Tanzânia, Gabão e Costa do Marfim. O Vaticano também apoiou o movimento, e organizações humanitárias cristãs abasteceram a população atingida.
"O governo americano tentou mediar a diferença do Papa com a Nigéria em janeiro de 1970, mas o antagonismo foi de curta duração", diz Nicholas Omenka, padre católico e professor de história na Universidade Estadual de Abia. Omenka acrescenta que o Vaticano e as organizações católicas tiveram papel importante na reconstrução da Nigéria.
Durante a Guerra Fria, o Reino Unido e a União Soviética apoiaram o lado nigeriano. "A guerra civil possibilitou que a Nigéria pedisse apoio bélico à Rússia e ao Bloco Oriental", lembra Eghosa Osaghae. Essa ligação permanece até hoje.
Como o mundo viu conflito separatista no Biafra há 50 anos
Há 50 anos, terminava a Guerra do Biafra, na Nigéria. Imagens de uma das piores crises humanitárias de África chegaram a vários países e geraram um movimento internacional de solidariedade.
Foto: picture-alliance/Leemage/MP/Lazzero
Ecos da independência
Milhões de vidas: Em 15 de janeiro de 1970, a guerra civil na Nigéria finalmente terminou. O conflito também foi travado com a arma da fome e abalou o mundo. Na época, muitos alemães se manifestaram contra a Guerra do Biafra. Porém, meio século depois, os apelos pela independência da região estão a ficar mais visíveis novamente.
Foto: Getty Images/AFP
Guerra às custas dos mais fracos
Os membros da etnia igbo, que na Nigéria são predominantemente cristãos, proclamaram a independência da República do Biafra, em 30 de maio de 1967. As quase 14 milhões de pessoas que viviam na região celebraram a criação de um novo Estado. Um ano depois, porém, iniciou-se a primeira guerra na Nigéria desde a descolonização começou. O nome Biafra logo se tornou sinónimo de miséria, fome e morte.
Foto: picture-alliance/Leemage/MP/Lazzero
Agravamento da crise humanitária
Quando as tropas nigerianas tomaram a cidade de Port Harcourt, em maio de 1968, a população do Biafra perdeu o acesso ao mar. A partir daquele momento, as pessoas que estavam em meio ao conflito passaram a depender de suprimentos jogados via aérea. Isso foi uma clara vitória para o Exército nigeriano. O efetivo liderado pelo general Ojuku era inferior e menos treinado.
Foto: picture-alliance/United Archives/TopFoto
Os “bebés de Biafra”
As tropas nigerianas iniciaram um cerco à região, no qual tentaram matar de fome os separatistas. Os chamados "bebés de Biafra" ficaram conhecidos em todo o mundo. A catástrofe humanitária gerou um movimento de solidariedade sem precedentes. Dezenas de milhares de crianças e idosos morreram no verão de 1968.
Foto: Gemeinfrei
O protesto pelas pessoas necessitadas
A guerra civil no Biafra mobilizou o público na Alemanha como nenhum outro evento africano. Em agosto de 1968, estudantes alemães e da região realizaram uma marcha de cinco dias até a então capital da Alemanha Ocidental, Bonn. Eles exigiram que Biafra fosse reconhecido como Estado soberano. A bandeira com o sol nascente tornou-se a bandeira nacional da Biafra.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Hennig
Apoio das celebridades
"Como alemães, devemos saber o que estamos dizendo quando usamos a palavra genocídio, porque o silêncio torna alguém cúmplice". O autor Günter Grass foi provavelmente o orador mais proeminente em um comício realizado em Hamburgo, em 1968, contra a Guerra no Biafra. Sua mensagem difundiu-se pela Alemanha. Na década de 1960, as pessoas já lidavam com o passado duro da Segunda Guerra Mundial.
Foto: picture-alliance/AP Photo/ESH
“Fome por justiça”
Na Alemanha, autoridades religiosa e políticas e milhares de cidadãos participaram do da Dia da Igreja Evangélica que, em 1968, também concentrou-se na crise no Biafra. Recursos financeiros e mantimentos foram arrecadados e enviados para a região devastada pela guerra.
Foto: picture-alliance/dpa/F. Reiss
"Sociedade para os Povos Ameaçados"
Em Hamburgo, os alunos Klaus Guerke e Tilman Zülch (foto acima) criaram o "Komitee Aktion Biafra-Hilfe". A organização recebeu o apoio de diversas personalidades, como o prefeito de Berlim, Heinrich Albertz; os escritores Günter Grass e Luise Rinser, e o bispo de Munique Heinrich Tenhumberg. O comité cresceu e tornou-se uma ONG internacional, a "Sociedade para os Povos Ameaçados".
Foto: picture-alliance/dpa/M. Schutt
Uma guerra para além do pensamento racional
O historiador Golo Mann elogiou aqueles que auxiliaram Biafra, embora seus comentários não sejam compreendidos: "Uma guerra na qual os imperialistas britânicos e os comunistas russos se unem na mesma corda do crime, na qual uma antiga colónia luta pela suposta unidade de seu Estado contra uma tribo que nem sequer é socialista é bastante desinteressante... Toda teoria é de fato prejudicial"!
Foto: picture-alliance/Keystone/Röhnert
"Biafra – milhões morreram"
Em Londres, os manifestantes marcharam da antiga embaixada soviética para o gabinete do primeiro-ministro, no número 10 da rua Downing. Eles acusaram tanto a União Soviética quanto a Grã-Bretanha de apoiar a Nigéria no conflito contra o Biafra fornecendo armas. O político do Partido Trabalhista, Michael Barnes, também falou num comício organizado pelo "Comité do Biafra".
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'A de Auschwitz — B de Biafra'
Muitos ativistas de direitos humanos ficaram atónitos com a falta de engajamento internacional. Eles expressaram frustração em artigos em jornais e até mesmo em cartazes com slogans como "A de Auschwitz - B de Biafra". Alemães bem conhecidos como Erich Kästner (foto acima), Ernst Bloch, Marcel Reich-Ranicki e Martin Walser eram apenas alguns dos signatários famosos.
Foto: picture-alliance/akg-images
Envio de ajuda médica
O médico francês Bernard Kouchner viajou parao Biafra em 1968, onde, como integrante da Cruz Vermelha Internacional (IRC), tentou fornecer ajuda médica à população necessitada. Kouchner criticou a posição do IRC de não interferir na política dos partidos em conflito. Ele prosseguiu lançando as bases da ONG internacional, "Médicos Sem Fronteiras".
Foto: Getty Images/AFP/D. Faget
Apelos pela independência continuam
Doações de todo o mundo mantiveram vivo o povo do Biafra. Organizações de ajuda e o IRC enviaram por via aérea mais de 7,3 mil itens, totalizando 81,3 mil toneladas de alimentos e medicamentos. Apesar da ajuda que receberam, os líderes do movimento separatista tiveram de se render à Nigéria em 15 de janeiro de 1970. Ainda hoje, porém, os apelos pela independência continuam.