Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados de Moçambique lembra, num relatório, que as leis são para ser lidas por todos e não só por quem fala português. Por isso, é preciso divulgá-las nas línguas locais.
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O relatório foi divulgado esta quinta-feira (01.08) mas é referente a 2017. Entre os temas mais prementes daquele ano, a Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM) aponta para a falta de divulgação dos instrumentos legais nas línguas locais.
Xavier Sicanso, jurista e membro da Comissão dos Direitos Humanos da OAM, critica por isso que se negligencie as populações não falantes de língua portuguesa: "Está a falhar o conhecimento dos direitos, porque a legislação toda que é adotada pelo Estado moçambicano é sempre criada e adotada em língua portuguesa", afirma Sicanso em entrevista à DW África.
Mais de metade da população moçambicana não fala a língua portuguesa, refere: "Estamos a falar de um país com 27 ou 28 milhões de habitantes em que só cerca de 41% é que falavam língua portuguesa. Isso quer dizer que quase 60% da população moçambicana não tinha acesso a estes instrumentos legais".
Em julho, foram publicadas traduções da Constituição da República de Moçambique em emakhuwa e changana, as línguas mais faladas do país. Mas, no relatório, são sugeridas outras formas de combate à desinformação sobre os instrumentos legais, como a criação de panfletos nas línguas locais ou através de programas nas rádios locais.
Além disso, segundo a OAM, continuam a existir outros desafios, nomeadamente no acesso da população às instituições do Estado pela Internet: "Os sites das instituições governamentais não funcionam como deve ser. Existe lentidão e alguns sites nem sequer abrem", comenta Xavier Sicanso.
"Lançamos um grande desafio ao Governo no sentido de potenciar esses sites, para que o cidadão, desejando aceder aos mesmos, possa fazê-lo sem dificuldades", afirma.
Direitos LGBT
Quanto à questão dos direitos da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Transgéneros), o relatório considera que existe um quadro legal favorável em Moçambique - nomeadamente, porque o artigo 35 da Constituição evoca o princípio da igualdade e da não discriminação e porque a lei das associações do país permite organizações de apoio às minorais sexuais.
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Porém, algo está a falhar porque a Associação Moçambicana para a Defesa das Minorias Sexuais (LAMBDA) não consegue ser reconhecida desde 2008: "Não existe um impedimento legal, mas é uma questão de implementação. Parece-nos, sim, que existe falta de vontade política. Em termos legais, não existe nenhuma barreira", afirma Xavier Sicanso.
No que toca ao ambiente social, Sicanso não descarta a continuidade da ocorrência de crimes contra os direitos das pessoas LGBT.
"Já se esteve numa situação pior. As minorias sexuais já se colocam nas ruas sem muito preconceito, ao contrário do que acontecia antes. Mas não vamos negar que, em um ou outro caso, ainda existe algum estigma e alguns maus-tratos que esses membros costumam sofrer, nos locais de trabalho e mesmo em instituições de ensino", diz.
"60% dos moçambicanos" sem acesso a legislação nacional
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Casamentos forçados
Por outro lado, os casamentos forçados em Moçambique ainda eram uma realidade muito premente em 2017.
"Estamos a falar numa altura em que o país se encontrava em décimo lugar ao nível mundial no que se refere a essa prática. Estamos a falar de quase 50% das raparigas a casar antes dos 18 anos", recorda o membro da Comissão dos Direitos Humanos da OAM.
Com a nova lei contra as uniões de menores de 18 anos aprovada em julho no Parlamento, a realidade dos casamentos forçados pode ter os dias contados, segundo Sicanso. A nova legislação "prevê penalizações, penas de prisão, tanto para os pais que consentem que as suas filhas sejam dadas em casamentos, como para os líderes que celebram esses casamentos", refere. E, "para além de criminalizar, refere que é preciso criar outros passos, como por exemplo a divulgação e sensibilização da própria comunidade."
O primeiro livro escolar de matemática de Moçambique
Foi um professor alemão que escreveu o primeiro livro de ensino escolar de matemática de Moçambique, Angola e Guiné-Bissau. À volta do livro e do seu autor, Achim Kindler, há muitas histórias sobre a FRELIMO no exílio.
Foto: DW/J. Beck
Ensino de matemática no contexto africano
Quando Achim Kindler, um professor alemão vindo da Alemanha Oriental (RDA), começou a ensinar matemática aos filhos dos líderes da FRELIMO no exílio na Tanzânia, não gostou do material didático dos portugueses. Estes livros foram desenhados para um contexto europeu. Kindler achou que seriam precisos livros escolares que refletissem a vida dos africanos e evitassem estereótipos colonialistas.
Foto: DW/J. Beck
Primeiro livro de matemática moçambicano
Entre 1968 e 69, Kindler desenhou o protótipo com meios improvisados. "Usámos batatas para os gráficos", contou numa entrevista. Mas faltou dinheiro para a impressão profissional. Em 1971, igrejas evangélicas europeias prometeram pagar 50% dos custos dos livros da primeira e segunda classe (foto). O Partido Socialista Unificado da Alemanha não quis ficar atrás e a RDA pagou o resto.
Foto: DW/J. Beck
Palmeiras, tangerinas e machetes
Para a época, o visual era revolucionário. Para a adição, usou quilos de peixe descarregados por membros de uma cooperativa que se encontravam em baixo de palmeiras (à esq.). Para a divisão, o exemplo foi uma tangerina cortada com um machete. Os textos refletiam o espírito comunista da época, cheios de referências à solidariedade, às lutas operárias e aos movimentos anti-colonialistas.
Foto: DW/J. Beck
Como Achim Kindler chegou à Tanzânia
Em 1966, o líder da recém criada FRELIMO, Eduardo Mondlane, visitou a Rep. Dem. Alemã para procurar apoio na luta contra o colonialismo. Como Mondlane falava bem inglês, os representantes da RDA tiveram a impressão de que inglês seria a língua de trabalho da FRELIMO. Enviaram Kindler para apoiar o partido no exílio na Tanzânia. Depois da sua chegada, Kindler teve, primeiro, que aprender português.
Foto: Gerald Henzinger
Mondlane e o apoio da RDA à FRELIMO
Até ao seu assassinato, em 1969, Eduardo Mondlane (à dir.) teve um papel fundamental nas relações entre o Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED) e a FRELIMO. A RDA evitava o apoio direto e canalizava os fundos através do Comité de Solidariedade. Após o seu primeiro encontro com Kindler, Mondlane escreveu ao comité: "Estou muito impressionado com o grande sentido de responsabilidade dele."
Foto: casacomum.org/ Documentos Mário Pinto de Andrade
Livro para três movimentos de libertação
Antes da independência de Portugal, a carência de material didático era grande. Os livros escolares eram importados da Europa, não somente em Moçambique, mas também nas outras colónias portuguesas em África. Por isso, os livros feitos pela FRELIMO também tiveram edições especiais para os movimentos independentistas de Angola e da Guiné-Bissau e Cabo Verde, o MPLA e o PAIGC.
Foto: DW/J. Beck
Amílcar Cabral agradeceu pessoalmente
Através da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), os livros chegaram também ao Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. "No VII congresso do Partido Socialista Unificado da Alemanha, que visitei para acompanhar Samora Machel, Amílcar Cabral [líder do PAIGC] aproximou-se e agradeceu-me pessoalmente", contou Kindler.
Um efeito da associação do livro aos movimentos da luta de libertação foi a presença de armas e guerrilheiros nos exercícios matemáticos. Nos livros de matemática de Kindler, encontram-se perguntas como "Quantos guerrilheiros há no campo de manobras?", ilustrações da espingarda típica AK-47 ("Kalashnikov") ou histórias de crianças que enchem lâminas de armas com balas.
Foto: DW/J. Beck
Realidade no exílio
As igrejas que pagaram os livros não gostaram da presença de armas. Mas, para Kindler, isto era natural, pois a luta armada fazia parte da vida real das crianças. "Queremos apoiá-los na libertação ou queremos discutir se é viável lutar sem armas contra Portugal?", contou Kindler na entrevista no livro "Wir haben Spuren hinterlassen" ("Deixámos marcas", editado por Matthias Voss em 2006).
Foto: DW/J. Beck
Primeiro logotipo da FRELIMO
"Para diferenciar as edições para os diferente movimentos, colocámos logotipos na capa. O MPLA e o PAIGC já tinham logotipo, mas a FRELIMO ainda não", contou Kindler. "Desenhámos um símbolo da FRELIMO para o livro. Mais tarde, alguns elementos foram usados no primeiro logotipo oficial. Isto foi motivo de grande alegria para nós", disse Kindler na entrevista conduzida em 2005, antes da sua morte.
Foto: DW/J. Beck
Amigo íntimo de Samora Machel
Ao ensinar os filhos dos líderes da FRELIMO durante vários anos no exílio, Achim Kindler tornou-se amigo íntimo de figuras importantes do partido, como Samora Machel. Quando Machel assumiu a Presidência de Moçambique, após a independência, em 1975, Kindler foi nomeado primeiro secretário da embaixada da República Democrática da Alemanha (RDA) em Maputo.
Foto: Fundação Mário Soares/Estúdio Kok Nam
Dúvidas de lealdade
Mas o autor do primeiro livro de matemática de Moçambique não ficou muitos anos na embaixada. "Acusaram-me de ser mais moçambicano que representante da RDA", contou Kindler, que depois de encontros privados com Samora e Graça Machel teve que voltar à RDA. Pelos seus méritos, Kindler recebeu a medalha de Nachingwea, uma das ordens mais importantes da República de Moçambique.
Foto: Fundação Mário Soares/Estúdio Kok Nam
Guebuza foi buscar os documentos de Kindler
Até à sua morte, Kindler guardou um valioso espólio de documentos históricos dos primeiros anos da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Em 2007, o então Presidente de Moçambique, Armando Guebuza, deslocou-se à Alemanha e levou os documentos de volta a Moçambique. Na foto: Guebuza quando encontrou o então edil de Berlim, Klaus Wowereit, no âmbito da sua visita de Estado.