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PolíticaRuanda

A história de amor entre o Ocidente e o Ruanda

Cai Nebe | ck
15 de março de 2023

Desaparecimentos forçados, oposição política inexistente e um Presidente que perdura no cargo e não tolera dissidentes. Mesmo assim, porque é que as democracias ocidentais estão tão empenhadas em negociar com o Ruanda?

Secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, e o Presidente ruandês, Paul Kagame
Secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, e o Presidente ruandês, Paul Kagame, em agosto de 2022Foto: Andrew Harnik/AFP/Getty Images

Kigali está a ultimar os preparativos para o 73º Congresso da FIFA, a 16 de março, um evento marcante para poderosos executivos do desporto mais popular do mundo. O secretário-geral da federação, Gianni Infantino, não tem adversários. A sua confirmação na liderança da FIFA é uma mera formalidade, Infantino tem a mão bem firme no cargo.

O mesmo se aplica à liderança do Presidente Paul Kagame, no Ruanda. O país, alvo de muitas críticas de defensores dos direitos humanos, não alinha pelo mesmo diapasão dos valores apregoados pelos países ocidentais em relação à liberdade de expressão e à democracia multipartidária.

A FIFA está consciente das críticas relativamente à espinhosa questão dos direitos humanos. Mas sediar o congresso no Ruanda levantou algumas sobrancelhas. A organização de direitos humanos Equidem classificou o Ruanda como "um dos Estados mais repressivos de África" e acusou a FIFA de "legitimar um regime que é acusado de deter e torturar ativistas indefinidamente por simplesmente dizerem o que pensam".

A Human Rights Watch também não poupou palavras ao descrever o Ruanda como um Estado que reprime "todos aqueles que são encarados como uma ameaça ao Governo".

Kigali acolhe o 73º Congresso da FIFA em 16 de março de 2023Foto: Getty Images/AFP/C. Ndegeya

A FIFA não é a única a fazer vista grossa à linha autoritária do Ruanda. O Reino Unido escolheu o país como parceiro para o seu plano polémico de deter requerentes de asilo, enviando aqueles que chegam ilegalmente à ilha para a nação africana.

E enquanto o Ministério Federal de Cooperação Económica e Desenvolvimento da Alemanha diz que os opositores políticos do Presidente Paul Kagame "são sequestrados e presos ilegalmente", seis unidades móveis de produção de vacinas da gigante farmacêutica alemã BioNTech chegaram esta segunda-feira ao Ruanda - é o primeiro fornecimento deste género para o continente africano, que tenta impulsionar a fabricação de vacinas mRNA. O Ruanda foi encarregado de distribuir as vacinas aos 55 membros da União Africana.

Um país que "sabe fazer"

Isto levanta a questão sobre os motivos que levam o Ocidente a parecer disposto a ignorar o histórico de abusos dos direitos humanos no Ruanda.

"Confusa", é como o investigador independente Frederick Golooba Mutebi, baseado em Kampala, descreve a política ocidental no Ruanda.

"Os países ocidentais estão sempre a falar sobre o historial de direitos humanos do Ruanda, mas não deixam de apreciar a capacidade do Ruanda de administrar muito eficazmente os recursos que recebe de organizações internacionais e parceiros de desenvolvimento", disse Mutebi à DW.

Phil Clark, especialista em África Oriental da Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS, em Londres) afirma que há muitas pessoas no Ocidente que veem o renascimento do Ruanda desde o genocídio de 1994 como uma história de sucesso inspiradora.

O Ruanda é um país pequeno e eficiente, com um PIB que estava a crescer cerca de 10% antes da pandemia Covid-19Foto: Cyril Ndegeya/picture alliance/Photoshot

"Muitas organizações internacionais e países querem ser associados a essa história de superação", disse Clark à DW, acrescentando que o "Ruanda se enquadrou com sucesso como um parceiro internacional de confiança. [Os parceiros] ficam a fazer parte da história de superação neste país, e os seus planos são cumpridos de forma muito clara e previsível."

Os Estados Unidos são um desses parceiros e são o país que mais contribui para o setor da saúde do Ruanda. Investimentos anuais de cerca de 116 milhões de dólares, nos últimos três anos, beneficiaram cerca de 13 milhões de ruandeses. Em 2021, os Estados Unidos forneceram 147 milhões de dólares em assistência externa, tornando-se o maior doador bilateral do Ruanda.

Acredita-se que o Ruanda utiliza a ajuda mais efetivamente do que os seus vizinhos, tendo construído infraestruturas relativamente boas. Kigali investiu nos sistemas de educação e de saúde. O Ruanda foi o primeiro país do mundo a ter uma maioria feminina no Parlamento. As suas cidades são seguras, as estradas estão limpas e o serviço público é bem organizado.

A reputação do Ruanda como um país que "sabe fazer" remonta às estruturas altamente organizadas da Frente Patriótica Ruandesa (RPF, no poder). O partido tem os seus próprios negócios e, não de forma incontroversa, controla extensas áreas da vida quotidiana ruandesa.

O investigador Golooba Mutebi contesta que o Ruanda tenha um histórico pior em matéria de direitos humanos do que os vizinhos. Mutebi refere que o sistema político ruandês "prioriza a construção de consensos em vez da competição", um método frequentemente descrito como autoritário, pois rejeita a democracia multipartidária.

Clare Akamanzi, diretora executiva do Conselho de Desenvolvimento do Ruanda, escreveu que os ruandeses "estão determinados a contrariar todas as tentativas de ditar quem devemos ser e o que devemos ou não fazer para melhorar as nossas vidas".

O Exército do Ruanda é aplaudido no continente como uma força de combate que pode trazer rapidamente paz e estabilidade - militares ruandeses combatem o terrorismo em Cabo Delgado, no norte de MoçambiqueFoto: Simon Wohlfahrt/AFP/Getty Images

Poucos recursos, mas muita imaginação

O Ruanda tem sido cada vez mais acusado de fazer uma "lavagem desportiva", um termo usado para descrever iniciativas estatais que utilizam eventos desportivos para distrair o público internacional de possíveis abusos aos direitos humanos. Os críticos desta noção, como Akamanzi, dizem que o termo é "quase exclusivamente empregado por comentadores do Ocidente e quase exclusivamente usado contra países do sul global".

O país ganhou uma significativa exposição internacional devido aos acordos de parceria "Visite o Ruanda" com os gigantes do futebol Arsenal FC e Paris St Germain, bem como da NBA África, no basquetebol. Será também o primeiro país africano a sediar o Campeonato Mundial de Ciclismo em Estrada (UCI), em 2025.

De acordo com Phil Clark, o foco no desporto é apenas um exemplo da abordagem pragmática dos líderes ruandeses em relação às parcerias estrangeiras. É uma perspetiva internacional, porque "eles pensam: Somos um país pequeno, sem litoral, uma economia muito pequena, sem recursos naturais, numa região muito volátil e, por vezes, bastante hostil".

Para sobreviver, o Governo de Ruanda apostou em tornar-se "útil aos atores globais poderosos", através de acordos de migração e da manutenção da paz, "mas também através do desporto", afirmou o especialista.

O fator Kagame

A Frente Patriótica Ruandesa, do Presidente Paul Kagame, pôs fim ao genocídio de 1994 e está no poder desde então. O chefe de Estado, de 65 anos de idade, assumiu o poder em 2000. Nenhum líder ocidental serviu tanto tempo, nem com tanta autoridade sobre o seu país. Kagame é ambicioso, astuto e experiente quando se trata de colocar as nações ocidentais umas contra as outras, como aconteceu quando o Ruanda, anteriormente francófono, entrou para a Commonwealth Britânica, em 2009, resolvendo simultaneamente com uma profunda tensão diplomática com a França.

Apesar de muitas críticas, os líderes ocidentais respondem positivamente à impressionante personalidade de Kagame.

"Kagame é um mestre no jogo internacional", disse Clark. "Às vezes, os críticos do Presidente ignoram isso. Ele é capaz de projetar esta aura de liderança muito claramente. E dirá: 'Sou a pessoa que, com o meu partido, resgatou este país depois do genocídio". E vejam o que construímos desde então".

Kagame tem sido repetidamente acusado de fomentar a insegurança nos países vizinhos, principalmente na RDCFoto: Simon Wohlfahrt/AFP

Um Exército eficaz 

O Ruanda, em si, é um país estável, que está localizado na instável região dos Grandes Lagos.

Desde que chegou ao poder, a RPF, de Kagame, tem sido repetidamente acusada de fomentar a insegurança em países vizinhos, principalmente na República Democrática do Congo. Recentemente, o grupo rebelde M23 capturou vastas áreas congolesas. Nicolas De Rivière, representante permanente da França junto às Nações Unidas, disse aos jornalistas: "É evidente que o Ruanda apoia o M23. Está também claramente estabelecido que há incursões do Exército ruandês no Kivu Norte e que isto também é inaceitável".

O mesmo Exército, no entanto, é reverenciado noutros pontos do continente como uma força de combate que pode trazer rapidamente paz e estabilidade, do Darfur a Moçambique, de acordo com Clark.

"O Ruanda tem sido incrivelmente eficaz em perceber o que os parceiros internacionais - seja as Nações Unidas, a União Africana ou os seus vizinhos - precisam em determinados momentos. É uma força muito disciplinada que muito poucos Estados africanos têm."

O Ocidente julgou erroneamente o Ruanda?

Para as nações ocidentais, o Ruanda parece ser um parceiro confiável: É um "oásis" de estabilidade política na África Oriental com um Exército capaz de restaurar a ordem em conflitos regionais, ao invés das forças de intervenção internacionais. Entrou em parceria com o Reino Unido para resolver o problema de migração de Downing Street, e é bastante eficaz na administração dos fundos para alcançar as metas de desenvolvimento económico previstas.

Ainda assim, os políticos ocidentais enfrentam um dilema. O Ruanda é um pequeno país, eficiente, com um crescimento do PIB de 10% antes da pandemia. Mas é liderado por um Presidente e um Governo repressivos, com um Exército letal. Segundo Phil Clark, a maioria dos doadores sabe que "estas duas realidades operam lado a lado, e estão dispostos a alinhar com isso porque há alguns benefícios muito tangíveis do que é um ambiente muito antidemocrático".

O investigador Golooba Mutebi não tem a certeza se o estilo de política externa ou de construção de parcerias de Kagame sobreviverá. Para isso, o sucessor de Kagame terá de ser "tão visionário, tão prospetivo e tão pouco convencional no seu pensamento" como o atual Presidente.

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