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A infância passada na guerra: crianças-soldado em Moçambique e Angola

Rita Himmel / Thais Fascina 25 de julho de 2014

Em décadas diferentes e regiões distantes, Albino Forquilha e Samuel Zombo viveram ambos infâncias com uma narrativa semelhante à de muitas crianças em zonas de conflito: foram crianças-soldado.

Foto: UNICEF/ITAL2009-0010/Falvo
Durante toda a História mundial, há inúmeros exemplos do uso de crianças em conflitos armados, seja propositadamente ou pela força das circunstâncias. Aliás, a condenação explícita e global da participação ativa de crianças em conflitos guerras é bastante recente. Só em 1989 foi assinada a Convenção sobre os Direitos da Criança, onde se pode ler que: “os Estados Partes devem tomar todas as medidas possíveis na prática para garantir que nenhuma criança com menos de 15 anos participe directamente nas hostilidades”.
Tanto Angola como Moçambique ratificaram o documento em 1990. No início dos anos 90, ambos os países ainda viviam guerras civis. Conflitos que começaram logo após a independência, e logo depois do final da guerra colonial, ou guerra de libertação.

Albino Forquila lidera a Força Moçambicana para a Investigação de Crimes e Reinserção SocialFoto: Fórum para a Investigação de Crimes e Reinserção Social
A história de Albino Forquilha, passou-se cerca de uma década antes da convenção sobre os direitos da criança. Hoje com 45 anos, Albino nasceu em Gondola, na província de Manica. Fez a quarta classe junto da família, até ser transferido para uma escola secundária junto à fronteira com o Zimbabué. Com apenas 12 anos, foi recrutado como criança-soldado.

“Vivíamos num ambiente de guerra: junto da minha escola, muitas vezes tivemos que fugir, e fomos treinados, também, na altura com cerca de doze anos, para podermos defender a nossa escola. Numa das vezes em que me deslocava para ir de férias ver a minha família, fui recrutado com mais três amigos pela RENAMO”, recorda. Para Albino e os seus colegas, resistir não era uma opção: “quando se fosse recrutado, não se podia resistir, porque a RENAMO podia matar-te no local mesmo”.

Depois de dias de caminhada e noites passadas na mata, o grupo chegou à base de M'Punga, onde viviam famílias à volta de um acampamento militar com um núcleo de sentinelas. À chegada, as crianças passaram por um treino onde aprendiam “basicamente, a fazer disparos e usar armas como a AKM. Alguns foram treinados inclusive para usar a bazuca e metralhadoras”. No sexto ou sétimo dia, as crianças receberam as suas tarefas. “Alguns do meu grupo já estavam a ser usados para trabalho de espionagem, como crianças, e também foram envolvidos em grupos de combate”, conta Albino.
Violência no quotidiano
Um soldado moçambicano conversa com uma mulher num campo de refugiados em 1988Foto: picture-alliance/dpa
Como já tinha a quinta classe, foi incumbido de registar os seus colegas. Mas, apesar da função o ter mantido maioritariamente fora do combate, Albino recorda a brutalidade da vida na base. Para além de lhes ser dada soruma, ou canabis sativa, para beber como mata-bicho (pequeno-almoço), ele relata que “quase semanalmente eram apanhadas famílias, jovens e adultos que tentavam escapar-se da base". Quando eram apanhados eram levados para o centro da base e, a uma hora marcada, "havia uma concentração, eram apresentadas as pessoas que procuravam fugir, e escolhiam-se algumas pessoas para disparar e matar essas pessoas - para demonstrar que ninguém podia fugir da base”.
“Nessas circunstâncias, de facto, muita gente foi morta. Nessas circunstâncias, fomos obrigados a matar cada um aquele que nos fosse indicado matar. Caso não fizesses, eras morto no lugar, havia outro que era chamado para te matar. Isto era uma prática constante”, relembra.

Quando as tropas do Governo atacaram o local, Albino conseguiu fugir com mais três colegas. Com a ajuda de pessoas que foi encontrando no caminho, e depois de vários interrogatórios, foi devolvido à sua escola. A sua mãe e os restantes membros da sua família já não esperavam vê-lo com vida quando se reencontraram.
Armados na escola
Antigas armas da RENAMO apreendidas pela FomicresFoto: Fomicres
A guerra tinha chegado também à zona onde vivia a família, por isso o jovem regressou à escola para concluir os estudos, onde tanto ele como os seus colegas dormiam com pelo menos uma arma ao seu lado.

As barreiras entre ser um soldado no sentido mais estrito, participando na frente de combate, e estar envolvido ativamente na guerra são facilmente esbatidas. Independentemente do lado pelo qual se lutasse naquele momento, as crianças eram sempre envolvidas: “Considero que fui criança-soldado pelo lado da RENAMO, mas também criança-soldado pelo lado do meu próprio Estado, porque, nessa altura, eu era mesmo criança quando tínhamos que defender a nossa escola”.
Contudo, o moçambicano nota que havia algumas diferenças entre os dois lados, uma vez que, “treinar como criança ao lado do Governo era mesmo para defender a escola, havia muita explicação em relação a isso, e nunca enfrentávamos combates militares”, enquanto que “do outro lado, ia-se ao combate, matava-se, fazia-se de tudo, todas as atrocidades possíveis”.

Hoje Albino está à frente da Força Moçambicana para a Investigação de Crimes e Reinserção Social (Fomicres), uma organização que trabalha na recolha de armas e na reinserção social de crianças-soldado. Até porque os traumas vividos por essas crianças têm um impacto inevitável em toda a sociedade. Para Forquilha, "para além dos grandes traumas que deixam nas pessoas", estas vivências fazem com que assistamos, atualmente, vinte anos após o acordo geral de paz, a "algumas barbaridades", nomeadamente no contexto de crimes, que seriam consideradas incompreensível em condições normais, mas quem passou por esse tipo de situações acaba "recordando que isto, de facto, é o legado daquilo que algumas crianças foram aprendendo".
Defender a aldeia

Soldados durante a guerra civil de Angola em 1993Foto: picture-alliance / dpa
Apesar de ser vinte anos mais novo e ter nascido a milhares quilómetros de distância, no Bié, em Angola, a infância de Samuel Zombo desenrolou-se segundo uma narrativa entrelaçada com a de Albino. Num país mergulhado em guerra civil, as crianças são demasiadas vezes envolvidas nos combates. Samuel tinha apenas nove ou dez anos quando aprendeu a usar uma AK-47, para defender a sua aldeia da UNITA.

“É um espécie de obrigação, não tem escolha: ou você faz, ou você morre. Ter que saber como manipular uma arma, tudo isso eles ensinaram. Fazíamos uma espécie de escolta, íamos fazer reconhecimento nas áreas e depois é que os soldados atacavam", recorda o jovem. "Nós éramos tipo a carne fresca lá para a guerra”, acrescenta.

Samuel, que agora vive em Munique, na Alemanha, prefere recordar as partes mais positivas da sua infância, como jogos de futebol com os amigos. Mas o ano e oito meses que passou em ambiente de combate permanece inevitavelmente na sua memória: “No princípio é o barulho que incomoda muito, o barulho da arma assusta. Depois, quando estás tu próprio a disparar, habituas-te. Mas tens sempre medo porque não sabes quando os rebeldes vão atacar, se vais acordar no dia seguinte". As palavras faltam para recontar esses momentos: "É tudo muito complicado, é difícil de explicar só quem viveu é que consegue explicar melhor”.
Recrutamento de crianças

A Síria é um dos países onde atualmente são usadas crianças-soldadoFoto: Getty Images/AFP
Para Samuel, as armas eram dadas às crianças “por falta de soldados, porque a maior parte dos soldados estavam recrutados em Luanda e nas outras províncias, e eles eram obrigados a puxar as crianças”. Mas, rapidamente, acrescenta: “obrigados não porque nós também fazíamos porque: ou você faz ou você morre”.

Albino vê outra razão para o recrutamento de crianças, uma vez que “quando se é criança, é mais fácil enveredar por outros caminhos sem grandes interrogações”. Para além disso, “o consumo de drogas era frequente, exatamente para fazer com que as crianças não começassem a pensar na sua casa, para que não começassem a pensar seriamente”.
A música como refúgio

Acompanhado de quatro ou cinco outros rapazes, Samuel acabou por conseguir fugir e, com a ajuda de uma ONG, chegar a salvo a Luanda. Na capital, acaba por trabalhar para um português que o ajuda a ir para a Alemanha, onde hoje, para além de eletrónico, Samuel tem uma carreira musical com o nome Kindoc, uma palavra em kikongo, língua do seu pai, que “quer dizer o feiticeiro, alguém que faz maravilhas, que faz magia, que do nada pode fazer alguma coisa”.

A escolha da música como carreira é tão natural como a sua nacionalidade, porque Samuel considera que “todo o angolano é músico, todo o angolano tem essa raíz da música - é só desenvolver”. A música é também uma forma de se distrair sem cair em tentações. “Aqui não fumo nem bebo, então tenho de procurar um divertimento. A maior parte dos meus amigos fumavam, bebiam, eu inclinei-me para a música”, explica.
Olhar para o futuro sem esquecer o passado

O "Red Hand Day" assinala-se a 12 de fevereiroFoto: imago
As histórias de Samuel e de Albino poderiam ser também as histórias de muitos outros moçambicanos, angolanos, e não só, cuja infância é marcada pela participação em conflitos armados. De acordo com a Human Rights Watch, existem crianças-soldado a combater em pelo menos 14 países atualmente. Algumas iniciativas tentam combater esta realidade. O Tribunal Penal Internacional considera o uso de crianças-soldado um crime de guerra. Há dez anos que, no dia 12 de Fevereiro, se assinala o Red Hand Day (dia da mão vermelha), uma iniciativa mundial para acabar com o uso de crianças-soldado.
Mas, para além do combate ao recrutamento e uso de crianças-soldado, Albino Forquilha defende que é essencial que haja um esforço para apoiar quem passou por essa experiência. Para o ativista, seria necessário fazer um levantamento a nível dos PALOP, “porque, muitas vezes, os conflitos cessam, ou por um acordo militar, de paz, ou por uma vitória militar, e as pessoas têm uma grande vontade de voltar para as suas terras, para as suas casas, de se juntar às suas famílias. Isto costuma fazer com que as pessoas entendam que tudo está bem porque a paz veio, e tudo está normal, e que não têm mais com que se preocupar. E esquecem-se de que algumas pessoas que passaram por essas hostilidades durante muito tempo, que ficaram expostas a essas situações, podem ter traumas muito fortes”.

E evitar que no seu país voltem a existir crianças-soldado é um dos grandes objetivos da organização de Forquilha, para além de reintegrar aqueles que passaram pelo mesmo que ele. Já Samuel Zombo, a partir do Sul da Alemanha, tem apostado na sua carreira de músico, e o seu CD, em princípio, será lançado em setembro deste ano.

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