“A liberdade faz-se com o coração”, diz Óscar Monteiro
25 de junho de 2014Quando o jovem Óscar foi estudar Direito para Coimbra, levava consigo as vivências de um indiano de origem goesa num Moçambique colonial. Mas o seu olhar para o que era o colonialismo, esse olhar era ainda incompleto, lembra.
Foram os seus tempos de estudante que contribuíram para fortalecer a sua trajetória nacionalista, através da troca de ideias com outros jovens. Naquela altura, a camada estudantil daquela universidade portuguesa desenvolvia uma consciência contestatária em relação ao regime fascista instalado em Portugal.
DW África: Em 1963 passa a ser militante da FRELIMO. Como se deu esse desenvolvimento?
Óscar Monteiro (OM): Nessa altura, já tinha começado a guerra colonial, em 1961, e quem estava em idade militar, que era o meu caso, já não obtinha passaportes. Mas havia uma oportunidade única que era a da viagem de estudo do fim de curso. Estava no quinto ano de Direito e quem pedia os passaportes era a universidade e a PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado] nunca recusava. Era uma espécie de falha do sistema. Davam até um passaporte muito simples, uma folha.
E quando eu regresso da viagem que nos levou até à Dinamarca, já tenho uma mensagem de Marcelino dos Santos que me entregou Paulo Jorge – que foi um grande dirigente do MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola] – dizendo-me: “vais organizar a célula da FRELIMO [Frente de Libertação de Moçambique] em Portugal e vais colaborar com duas pessoas, uma de Angola chamada Zefu – Álvaro Santos era o nome dele – e outro do PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde] que é o Jorge Querido e vocês vão montar uma rede dos três estudantes das colónias.” É assim que eu entro na FRELIMO.
DW África: Como foi viver e agir na clandestinidade?
OM: Bom, primeira coisa, nós não tínhamos experiência. Nós tínhamos colegas portugueses com experiência que vinham do Partido Comunista e de outras formas menos legais de outros partidos.
Um bocado mais tarde, eu recebi um código e instruções de como fazer tinta simpática. Recordo-me que metia vinagre, limão e que depois se lia com calor à luz da vela. Então, essas foram as únicas instruções que recebemos. O resto foi connosco.
Sabíamos que as células se organizavam de uma forma triangular, cada um devia ter duas pessoas com quem trabalhava e outros dois também para que, no caso de a polícia nos capturar, limitar a captura. O nosso trabalho era parte clandestino parte semi-legal ou legal mesmo.
A parte legal, vou começar por essa, era na Casa dos Estudantes do Império, encorajando essa associação, apoiando, participando, editando livros. A parte clandestina foi editar, em colaboração com um colega de liceu daqui de, na altura, Lourenço Marques, Álvaro Mateus, que tinha decidido passar para o Partido Comunista e ser trabalhador clandestino, foi editar um jornal que se chamava “Anti-Colonial” e para o qual nós contribuíamos com notícias e eles contribuíam com a edição: eles tinham imprensas, papel bíblia e foi uma maneira de nos dirigirmos a um público mais vasto em Portugal e também nas colónias.
DW África: Devido à sua atividade na clandestinidade, teve de deixar Portugal. E passou os anos seguintes entre França, Itália, Tanzânia, Argélia. Na Argélia, foi representante da FRELIMO, recebeu treino militar, fez trabalho político e, quando o tempo lho permitia, ia às aulas na universidade e pôde terminar o curso de Direito. Lá, na Argélia, juntaram-se grupos nacionalistas não só de Moçambique, mas também de outros países africanos. Mas também apareceu um grupo da oposição portuguesa. Como foi isso?
OM: A Argélia tinha ganho a independência depois de uma dura luta de 1954 a 1962 e considerava seu dever apoiar os movimentos de libertação. O primeiro grupo de guerrilheiros, 250, que começaram a luta de libertação em Moçambique, foram treinados na Argélia e o meu papel foi integrar-me nesse processo. Então, tudo isso foram experiências que fomos acumulando e neste processo de África, nós também entrámos em contacto mais amplo com a oposição portuguesa que também viveu este processo, creio eu, de movimento africano, das independências africanas. Eu acho que essa foi uma ocasião muito boa de definir o que é a liberdade e o que é a solidariedade e o que é a causa e o que são as pessoas.
DW África: Nesses anos também passou temporadas no campo de preparação político-militar de Nachingwea, na Tanzânia. Foi lá que conheceu Samora Machel... Como foi esse primeiro encontro?
OM: Quando sou nomeado representante [da FRELIMO], eu recebo a informação de que: “tens de vir para aqui e vais treinar”. Eu achei um bocado estranho: “mas o que é que tem a ver o treino com a função de representante no exterior?”. E afinal tem tudo a ver.
Então, eu estou a treinar como um soldado simples e aprendi logo as regras – que soldados simples comportam-se como soldados simples – e um dia vou com a minha lata de petróleo apanhar água – a gente usava umas latas de petróleo em paralelipípedo, grandes para lavar as armas que chegavam e cada um de nós conseguia obter uma lata para si, ou partilhava com alguém, com um pau no meio, e era preciso ir a uma fonte apanhar água e levava bastante tempo – então, quando eu vou fazer isso, eu vejo de longe o Samora [Machel] e o [Joaquim] Chissano – o Chissano eu já conhecia, porque tínhamos sido colegas no liceu – eles acabavam de vir do interior e o Chissano viu-me de longe e disse: “Óscar, anda cá!”.
Então, eu aproximei-me e o que é que o Samora estava a fazer nessa altura? Estava a inspecionar latrinas que estavam a ser construídas. E eu, enquanto era apresentado, estava admirado. Afinal, eu estava à espera de um Samora numa sala cheia de mapas, a fazer planos e está aqui a inspecionar latrinas?
Eu creio que até lhe perguntei, quando já tínhamos confiança: “desculpe, camarada Samora, estava ali a inspecionar latrinas?” E ele disse: “sabes, a higiene é uma das coisas mais importantes. Nas casas-de-banho tens de criar condições para que as pessoas se preservem e se respeitem. Porque é lá que tu estás mais exposto. Tiras toda a roupa.” Portanto, é desta forma muito simples, e à primeira vista banal, que me leva a conhecer Samora.
DW África: Entretanto, foi nomeado secretário adjunto das relações exteriores da FRELIMO. A sede das relações exteriores passou para Nachingwea e lá continuou a dar preparação política aos combatentes. O que era importante ensinar a um guerrilheiro?
OM: A coisa mais importante era as pessoas compreenderem a guerrilha como nós a praticámos. Era sobretudo um ato consciente de destruição de um sistema de operação. Não era tanto a ação militar, mas a consciência que ditava o que se ia fazer. Então, este processo tinha duas fases: uma, que a gente chamava de narração de sofrimentos: você contar o que tinha vivido e nesse contar iam sair todos os sofrimentos, todas as ofensas, todas as humilhações. Mas uma vez libertado das marcas de sofrimento já deixava de ser motivado por ódios, já era um homem livre, que lutava pela liberdade. De contrário, faria uma luta de ódio, de vingança.
Segundo, e isso depois era a parte em que se insistia constantemente: a unidade nacional. Se a nossa causa era justa, porque é que durante tanto tempo nós não tínhamos conseguido vencer? Então, a ideia de que temos que nos unir para vencer o colonialismo era a ideia fundamental. É evidente que também havia tensões, incompreensões. Até havia tensões, porque certa palavra numa língua tinha um conteúdo muito negativo e às vezes isso levava a que houvesse pequenos conflitos. Então era preciso que você se habituasse ao outro, a falar com o outro.
DW África: Era em Nachingwea que estava no dia 25 de abril de 1974. Como recebeu a notícia da Revolução dos Cravos em Portugal?
OM: Eu estava a dar aulas na escola do partido, uma escola que tínhamos criado em 1973, a dar aulas sobre a política exterior da FRELIMO. E no intervalo nós ouvíamos a rádio e eu ouço a Radio France Internationale a dizer: “coup d’état au Portugal” [golpe de estado em Portugal] e depois a dizer “cette fois c’est pour de bon”, isto é, desta vez é a sério. Isto seria 9:30 da manhã e, entre nós professores, que éramos quadros, secretários, secretários-adjuntos do Comité Central, perguntámos: “o que é que vamos fazer?” Dissemos: “a luta tem que continuar. Vamos continuar a dar aulas.”
DW África: Depois do 25 de Abril, teve um papel de destaque nas negociações com as autoridades de Lisboa no âmbito dos Acordos de Lusaka que culminaram com a sua assinatura em setembro de 1974. Como decorreram as negociações?
OM: As negociações decorreram em várias fases. Logo nos primeiros dias de maio, recebemos um telegrama de Mário Soares, então já ministro dos Negócios Estrangeiros, propondo conversações em qualquer parte da Europa para discutirmos. E nós dissemos: “sim, senhor, estamos prontos”. Marcámos o primeiro encontro para o princípio de junho e dissemos: “as questões de África devem ser discutidas em África”. E propusemos Lusaka.
Nessas primeiras conversações, a delegação portuguesa tinha um único mandato que era pedir um cessar-fogo. Então, nós dissemos: “nós estamos de acordo com o cessar-fogo naturalmente. Não somos guerreiros profissionais. Mas o cessar-fogo tem que ter algum acordo de princípio. Não é preciso implementar a independência já. Podemos ter um período de transição. Mas é preciso que concordemos com os princípios”.
A questão importante foi o reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação – e agora vou usar a linguagem da época – “com todas as consequências, incluindo a independência”. E aí nós fizemos finca-pé. Até ao momento em que assinámos um memorando, em que estes princípios estavam estabelecidos e a transmissão do poder à FRELIMO como representante do povo moçambicano.
DW África: Hoje viaja por Moçambique para contar aos jovens como é que se faz a liberdade. Afinal, como é que se faz a liberdade?
OM: A liberdade faz-se com o coração. Amar as pessoas, amar, respeitar, desejar o bem dos outros, se não acima pelo menos tanto quanto desejamos o bem dos nossos. Faz-se também aceitando estar em minoria, aceitando não seguir a corrente dominante e aceitando ter coragem e aceitar as suas consequências.