A literatura continua um instrumento de luta em Angola?
2 de julho de 2021O escritor e especialista em literaturas africanas Luís Kandjimbo reconhece que a literatura já teve um papel determinante na história de Angola, principalmente para a condução da independência do país, mas não desvaloriza a atual produção literária.
Sobre "democratização" do prestígio e reconhecimento normalmente centrados nos sonantes nomes da escrita, o académico angolano entende que o Estado têm uma responsabilidade. Conversámos com Kandjimbo.
DW África: Fez parte da chamada geração das incertezas e foi fundador do grupo literário Ohandanji. A literatura em Angola ainda é anexada a movimentos literários ou ela é mais "solta"?
Luis Kandjimbo (LK): Curiosamente continuam a haver movimentos, as gerações que se vêm revelando hoje continuam a mostrar uma propensão para a criação de círculos de interesses. E esse fenómeno é histórico na literatura angolana, começou na década de 30-40 do século XX. Eu próprio faço parte de uma geração que também protagonizou esta tendência para criar movimentos literários, e o fenómeno continua hoje. Por vezes, nem sempre há preocupação em conhecer um pouco a história para que não se repitam erros. Mas curiosamente isso vem acontecendo, há movimentos, posso falar de alguns deles, há associações que retomam o modelo de associativismo literário que já houve há 30-40 anos.
DW África: Num raio x a literatura contemporânea angolana, qual seria o seu diagnóstico?
LK: A literatura angolana continua pujante e muito dinâmica, apesar de, do ponto de vista editorial, não haver uma correspondência para esta produtividade dos autores. Seria ótimo que, do ponto de vista editoral, houvesse uma capacidade como a que tivemos nos anos 80 do século XX, mas os tempos são outros, há mais autores a fazerem ficção narrativa, poesia, o texto dramático vai sendo cultivado. Mas lamentavelmente essa produção nem sempre tem correspondência na produção editorial, em termos de livros publicados.
DW África: A literatura em Angola deixou de ser um instrumento de luta e consciencialização, como foi no tempo colonial e nos anos 80?
LK: A literatura angolana, do ponto de vista da história, teve, de facto, uma grande componente que se inscreveu nas décadas de 40 e 50, nesta lógica libertária, da luta pela independência, mas hoje os tempos são outros. Alcançada a independência, houve aquele período de partidos únicos que, do ponto de vista ideológico, afastavam a literatura, com aquela visão marcada pelo marxismo, mas hoje isso já não acontece. As ruturas do ponto de vista estético, com projeção política, começaram a ocorrer com a geração de 80, em que as preocupações de articulação do discurso literário com a dimensão ética se foram redefinindo, e a partir dessa altura a questão ideológica deixou de ser marca definidora do discurso literário para ser um pouco mais livre dessas amarras que condicionavam o pensamento e a atividade criativa.
DW África: Não podemos ainda dizer que a literatura enquanto arma foi substituída por manifestações de rua por parte dos jovens...
LK: A literatura é uma atividade iminentemente criativa e por conseguinte muito propensa a centrar-se no eu do criador, de tal maneira que, sendo um papel que é exclusivamente individual, assente na pessoa de quem se dedica a essa atividade, é muito difícil admitir que a literatura não seja uma ferramenta complementar das atividades cívicas, que têm uma dimensão mediática muito maior, eventualmente. A literatura é hoje mais uma ferramenta que contribui de igual modo para o exercício das liberdades.
DW África: O reconhecimento e o prestígio literário em Angola são já "democratizados"? Ou seja, os jovens autores com mérito já são valorizados e reconhecidos?
LK: A questão da meritocracia no domínio da literatura é um pouco um problema que articula um outro tipo de ações realizadas pelo Estado e instituições ligadas ao Estado. O prestígio e a meritocratização da atividade literária passam necessariamente por uma maneira nova de os jornalistas olharem para o papel que os escritotes têm e sobretudo para o resultado da sua atividade, que é o livro. E isto está a ser um pouco mais lento e mais difícil porque as redações dos órgãos de comunicação social nem sempre são dotadas de jornalistas capazes de compreender o modo como deve funcionar o sistema cultural.