João Viana retorna ao festival com dois filmes que tematizam a loucura, o colonialismo e a guerra. Realizador português revela que ele e parte de sua equipe chegaram a ser detidos durante as filmagens em Moçambique.
Publicidade
Os enredos dos dois filmes, a curta-metragem "Madness" e a longa-metragem "Our Madness" (sem tradução para o português), são semelhantes: a personagem principal, Lucy, foge de um hospital psiquiátrico em Maputo e vai ao encontro do filho e do marido.
"A Lucy é louca na curta[-metragem]. Mas também se pode ver a loucura, não só do lado de fora, mas entrar na loucura. Na longa[-metragem], estamos dentro da loucura de Lucy, que eu acho que não é – que ela não é louca", explica o realizador português nascido em Angola, João Viana.
"Loucura" moçambicana
O realizador diz que as histórias, que têm a loucura como fio condutor, são "uma metáfora sobre a situação política e social presente em Moçambique". Mas ele deixa aberta a interpretação. "Há uma loucura africana, no fundo, e há uma loucura em Moçambique neste momento", considera.
Perguntado sobre como avalia o atual momento em Moçambique, João Viana não responde, mas revela que ele e sua equipe chegaram a ser detidos durante as filmagens em Moçambique.
Berlinale Joao Viana OL - MP3-Stereo
"Eu não sei. Isso eu não queria falar. Nós fomos para a cadeia. Foram várias pessoas. Estávamos com uma criança, a criança também foi, sabe? Eu preferiria não falar sobre isso. Desapareceu-nos coisas, o filme desapareceu. Não o encontramos. É melhor não [falar]. [Isso aconteceu] durante as filmagens", descreve.
Nos filmes, um aspeto que evidencia a loucura é a morte do filho da protagonista depois que ela o reencontra, após fugir do hospital.
"Ela está no hospício porque o filho morreu. Mas, se o filho morreu, não pode encontrar o filho. A história é linear. Mas, ao mesmo tempo, não pode ser. Isto não pode ser. Ela não pode ter encontrado o filho e depois ir ter com ele para encontrar o pai se o filho já tinha morrido, não é?", pondera Viana.
O diretor nos conta, no entanto, como chegou a esta metáfora entre a loucura e a realidade moçambicana. Foi em 2014.
"Eu ia num autocarro em Moçambique e o condutor para o autocarro e diz assim: 'O senhor tem que ir lá para trás'. Eu eu disse: 'Mas não tenho medo'. E ele disse: 'Mas eu tenho'. Ele estava com medo de que eu fosse atingido por ser branco num autocarro de africanos. Era mais fácil para ser alvejado. E eu pensei: o mundo está louco", recorda.
Ousado e conceitual
Como de costume, João Viana abusa da ousadia. Imagens em preto e branco, ângulos inusitados, ritmo lento e poucos diálogos. O realizador explica por que optou por técnicas pouco convencionais.
"O filme é complexo, porque o colonialismo foi muito mal e por isso é assim tudo tão esquisito e complexo. Mas tem que ser. Porque se não fosse complexo, não valeria a pena", defende.
Além da loucura, a religião desempenha um papel importante na história. No filme, uma pregação num programa de rádio é ouvida também no hospital psiquiátrico.
"Estamos na cabeça da Lucy, que nos conta a história, mas a cabeça dela já está muito religiosa também. O filho morreu, mas o que ela sonha é: 'Se Jesus Cristo ressuscitou, porque é que meu filho não pode ressuscitar'? E é normal, porque que ela é uma mulher simples. Por isso, ela agarra-se à religião", explica.
Sucesso na Berlinale
Esta não é a primeira vez que João Viana participa da Berlinale. Em 2013, ele mereceu uma menção especial do júri da Berlinale pelo filme "A Batalha de Tabatô", sobre a Guiné-Bissau. O realizador diz que não tem grandes expectativas para este ano, mas sublinha a importância da Berlinale.
"Há um lado muito profissional e de brio no trabalho alemão de programação. Nesta programação da [mostra] Forum, encontrei aqui cinema que não encontro em parte nenhuma do mundo. Berlim é muito importante, porque é o primeiro festival do ano. É muito bom estrear aqui, porque depois há todo um ano de trabalho pela frente", avalia.
Com essas duas produções, João Viana participa nas mostras Forum, dedicada a filmes alternativos, e na mostra Shorts, para produções curtas.
A entrega do "Urso de Ouro", o prémio de maior prestígio do festival, será feita no próximo dia 24. O Festival Internacional de Cinema de Berlim termina a 25 de fevereiro.
Cinemas únicos em Angola
São obras únicas vistas pela lente do fotógrafo angolano Walter Fernandes - cinemas e cine-esplanadas desconhecidos de muitos. As fotos foram reunidas em livro e estão em exposição em Lisboa, a partir desta semana.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
"Uma ficção da liberdade"
O Cine Estúdio do Namibe inspira-se nas obras do arquiteto Oscar Niemeyer. É um dos edifícios únicos de Angola destacados no livro "Angola Cinemas - Uma Ficção da Liberdade" e fotografados por Walter Fernandes. Esta é uma das imagens em exposição no Goethe-Institut de Lisboa que revelam uma arquitetura desconhecida por muitos de cinemas construídos antes do fim do domínio colonial português.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
Património mal preservado
O Cine Tômbwa, também no Namibe, obedece a uma lógica de salas fechadas, mas já apresentava algumas linhas mais modernas. Segundo o fotógrafo Walter Fernandes, o edifício foi construído com materiais "sui generis". Mas o património herdado está muito mal preservado, lamenta o angolano.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
Moçâmedes: A pérola do Namibe
No Cine-Teatro Namibe (antigo Moçâmedes) nota-se bastante a influência da arquitetura do regime ditatorial português, o Estado Novo. Este é considerado um dos cinemas angolanos mais antigos e também aparece no livro "Angola Cinemas - Uma Ficção da Liberdade", apadrinhado pelo Goethe-Institut em Luanda e pela editora alemã Steidl.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
Conceito futurista
O arquiteto Botelho Pereira não só desenhou o Cine Estúdio do Namibe, como também o Cine Impala. Botelho Pereira inspirou-se no movimento deste antílope e planeou espaços abertos e arejados, de forma futurista. O livro "Angola Cinemas - Uma Ficção da Liberdade" também destaca estas cine-esplanadas, que ganharam popularidade a partir de 1960 por se adaptarem mais ao clima tropical do país.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
Cinema-esplanada para as elites
Este é um dos cinemas preferidos de Miguel Hurst, um dos editores do livro "Angola Cinemas". Foi aqui, no Cine Kalunga, em Benguela, que se pensou em fazer a obra. Cine-esplanadas como esta adequavam-se mais ao clima, mas serviam também um propósito do regime português - criar locais de convívio entre as populações locais e os colonos. A elite branca e a pequena burguesia negra vinham aqui.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
A "grande sala"
A "grande sala" de Benguela era o Monumental - pelo menos, ganhou essa reputação. Os colonizadores portugueses construíram o Cine-Teatro nesta cidade costeira pois evitavam o interior do país - normalmente, as companhias portuguesas só atuavam nas grandes cidades da costa angolana.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
Imperium: "Art decó" em Benguela
Aqui, são imediatamente visíveis traços da passagem da "art decó" (um estilo artístico de caráter decorativo que se popularizou na Europa nos anos 20) para o modernismo. O interior do Cine Imperium, fotografado por Walter Fernandes, representa bem essa mistura estética, com os cubos, retas, círculos e janelas. Benguela tinha várias salas, porque era das províncias mais populosas de Angola.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
O arquiteto que pensava as cidades
Este é o interior do Cine Flamingo: mais uma pérola da província de Benguela. A parte de trás é uma esplanada. Sentado, o espetador está em contacto com a natureza, mas não está exposto. Até hoje, a estrutura mantém-se, mas o espaço está um pouco vandalizado. Miguel Hurst sublinha a importância de manter obras como esta do arquiteto Francisco Castro Rodrigues, um homem que pensava cidades.
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
Primeiro cine-teatro de Angola
"O Nacional" Cine-Teatro foi a primeira sala construída em Luanda, no início do Estado Novo, nos anos 40. Esta é uma das imagens patentes na exposição no Goethe-Institut em Lisboa. A mostra pretende ser "um testemunho do modo como estes edifícios constituíam um enquadramento elegante que sublinhava uma simples ida ao cinema, promovendo assim a reflexão sobre esta herança sociocultural e afetiva."
Foto: Walter Fernandes/Goethe-Institut Angola
Memória para gerações futuras
Os irmãos Castilho são os principais responsáveis pela introdução das cine-esplanadas em Angola. A primeira da sua autoria foi o Miramar, encostado a uma ribanceira virada para o mar em Luanda. Depois surgiu o Atlântico, na foto. Para os autores do livro "Angola Cinemas - Uma Ficção da Liberdade", este é um documento de memória que pode ser útil para as futuras gerações.