Africanos em busca de refúgio chegam desamparados ao Brasil
5 de janeiro de 2014 Maria (*) fecha os olhos e canta para lembrar de seu país. Ela está na recepção de uma instituição católica aguardando cobertor e cesta básica, mas sente-se com marido e filhos em Bukavu, sua cidade-natal. A guerra a fez fugir da República Democrática do Congo para o Brasil. Sozinha e sem notícias da família, ela aguarda ser reconhecida como refugiada no país, assim como outros 5 mil solicitantes de 69 nacionalidades.
Ela não sabe onde está o marido, nem os dois filhos, um de dois e outro de oito anos. “Eu fui para o trabalho e o meu marido ficou em nossa casa no Congo. Começou a guerra e eu fugi numa estrada. Meu marido e meus filhos fugiram em outra direção. Eu não sei se estão vivos ou mortos. Não tenho qualquer informação”.
Amigos de Maria a ajudaram a tirar o visto brasileiro e pagaram a passagem de avião. Ao chegar ao país no início de 2013, a congolesa perambulou pelas ruas da cidade de São Paulo durante oito dias. “Fazia muito frio e eu não tinha mais nada. Eu fazia as minhas necessidades forçada. Eu pedia aqui e ali para me arranjarem qualquer coisa para comer”, relembra.
Um africano que a viu tremer de frio na rua ofereceu ajuda e a levou até o Centro de Acolhida para Refugiados, na Praça da Sé, no centro da capital paulista. O local é gerido pela Cáritas Arquidiocesana de São Paulo. O escritório parceiro do Alto Comissariado das Nações Unidas, o ACNUR, encaminha os pedidos de refúgio ao Comitê Nacional de Refugiados, providencia documentação junto à Polícia Federal do Brasil e direciona os estrangeiros a abrigos.
“A maioria dos africanos vêm sem norte, por isso, nós damos um primeiro apoio. São poucos os abrigos disponibilizados por organizações não-governamentais. Temos a possibilidade apenas de encaminhá-los para a rede pública de albergues, que não é adequada para estrangeiros. Eles ficam em uma condição muito vulnerável”, afirma Maria do Céu, que atende estrangeiros na Cáritas há seis anos. Diariamente, a entidade atende mais de cem pessoas em São Paulo.
Falsa rede de proteção
Madelaine, de Kinshasa, a capital da República Democrática do Congo (RDC), também aguarda ser reconhecida como refugiada no Brasil. O pai da jovem de 18 anos era secretário de um deputado da oposição. Em 2012, quando o Presidente da RDC, Joseph Kabila, recebeu informações de que o parlamentar planejava contra o governo, todas as pessoas ligadas a ele foram perseguidas.
“Naquela hora, eu estava na escola. Meu pai, minha mãe e meus irmãos tiveram de fugir. Uma amiga da minha mãe me buscou e me levou para a casa dela. Ela me guardou por dois meses e, depois, para minha segurança, mandou-me para o Brasil”, conta.
Ao chegar ao Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, ainda sem saber falar o português, Madelaine pediu ajuda a um nigeriano, que a levou para a casa onde morava. Após seis dias trancada no local, a jovem foi estuprada. “Lá na casa dele aconteceu uma coisa ruim e ele me expulsou da casa. Fiquei andando na rua e daí encontrei outro africano. Foi ele que me levou até a Cáritas”.
Segundo Carmen Victor, do Instituto do Desenvolvimento da Diáspora Africana no Brasil, a falta de amparo institucional faz com que as africanas caiam em uma falsa rede de proteção. “São mulheres cuja vida é atrelada à figura masculina do pai, do irmão ou do marido. No Brasil, elas terminam sendo usadas por imigrantes africanos para vários fins. Muitas são obrigadas a transportar drogas e a prestar favores sexuais. Encontra-se de tudo, desde o apoio verdadeiro ao total abandono”, explica.
“Não há como voltar”
Francisca foi vítima de perseguição política em Kinshasa, no Congo. O pai trabalhava para um coronel que se opôs à reeleição do Presidente Joseph Kabila. Os dois tiveram que fugir. Ela parou de estudar e foi morar na casa de um amigo do pai.
A mãe e os dois irmãos permaneceram na casa da família. Policiais foram ao local e perguntaram pelo pai de Francisca. Naquele momento, os pequenos começaram a chorar. “Eles sequestraram minha mãe e meus dois irmãos. Foram embora com eles e queimaram a casa. Não sobrou nada”, relata.
Meses depois, o amigo do pai de Francisca enviou a jovem ao Brasil temendo represálias. Francisca chegou ao país em janeiro de 2013. Sem falar português, passou dois dias dormindo no aeroporto internacional em Guarulhos. Lá, encontrou um grupo de moças que falava francês. Todas eram prostitutas.
“Quando eu cheguei na casa delas, falaram que eu poderia ficar, mas deveria trabalhar para me manter. Uma noite, elas me levaram até o ponto onde trabalhavam. Eu não queria fazer aquilo. Naquela noite, eu falei que não estava me sentindo bem e elas entenderam”, conta.
No dia seguinte, ao não aceitar novamente, Francisca foi ameaçada. “Aquelas que falavam francês disseram ‘tem que chamar uns cinco homens para violar essa menina’. Eu me assustei. E, quando elas estavam distraídas, eu saí da casa e fugi”.
Francisca andou sem rumo pelas ruas de São Paulo. Ainda naquele dia, escutou um rapaz falando lingala, o idioma de Kinshasa. Ela pediu ajuda e foi levada até a Cáritas.
Hoje, a congolesa vive em um abrigo para menores de idade. Ela faz um curso de português e conseguiu emprego em uma empresa de telemarketing. “Não tem como voltar, porque há muito tempo as coisas não mudam. Quando eu nasci era assim. Eu cresci e é a mesma coisa. Tenho estresse, dor no coração, porque eu não sei onde está minha família, não sei o que aconteceu com eles”.
A jovem congolesa também relembra casos de violência em seu país. “Quando o governo manda... o rebelde... não sei como posso chamar aquelas pessoas... Quando eles encontram um menino e uma menina da minha idade, o pai e a mãe em uma casa, eles mandam o rapaz se deitar com a mãe e o pai, com a garota. Obrigam! Se você não faz, eles te matam”, conta Francisca.
Ela se recorda de um vizinho que foi obrigado a fazer sexo com a própria mãe, uma senhora de idade. “Com aquela vergonha, ele não conseguiu viver em paz. Ele se matou”.
Apesar dos traumas, Francisca pretende estudar para poder ajudar os congoleses. Ela quer ser médica, mas sem toda documentação necessária não consegue se matricular. “Já faz tempo que estou pedindo os documentos para o Governo aqui no Brasil, mas não consigo. Quando eu era criança, eu falava que, quando eu tivesse 25 anos, seria uma grande médica... Essa incerteza me incomoda muito aqui no Brasil”, diz.
À procura de uma nova vida no Brasil
Na Zona Leste de São Paulo, homens africanos se juntam a moradores de rua brasileiros aguardando uma vaga no abrigo Arsenal da Esperança. Em 2013, a demanda de estrangeiros aumentou.
Pedro Baptista, de Guiné-Bissau, chegou no mês de março. Havia seis meses que estava sem receber o salário como professor dos ensinos fundamental e médio na capital guineense. O golpe de Estado em abril de 2012 motivou o sindicalista a sair do país. “Deixei a minha esposa grávida, ela já deu a luz e nem tenho dinheiro para dar a ela. O país está em constante instabilidade. Então isso obrigou-me a procurar refúgio no Brasil. Vim cá procurar melhor condição de vida”, conta.
Formado em química e biologia, Pedro Baptista se tornou orientador comunitário do Arsenal da Esperança. Ele aguarda, com outros 93 guineenses, ser reconhecido como refugiado no Brasil, apesar de não ter sofrido uma ameaça direta. Apenas 11 africanos de Guiné-Bissau gozam do Estatuto do Refugiado, segundo o governo brasileiro.
“Os governantes do Brasil bem sabem que a Guiné-Bissau tem problemas. A CPLP (Comunidade dos Países Africanos de Língua Portuguesa) não reconheceu o governo que está no poder neste momento. Imagine um país com 40 anos de independência não ter nenhum governo que tenha terminado seu mandato e ser palco de sucessíveis golpes... É lamentável mesmo”.
Segundo Simone Bernardi, o coordenador italiano do Arsenal da Esperança, a maioria dos estrangeiros da casa que quer ser reconhecida como refugiada no Brasil não foi vítima de perseguição. “São jovens que, muitas vezes, aparentam ser um pouco a elite do país de onde vieram. Tem um perfil de quem completou os estudos e quer procurar um futuro melhor”, explica.
Pedro Baptista pretende fazer uma especialização no Brasil e mandar ajuda para seu país. "A minha vida está em causa, porque eu sou filho mais velho. Meus irmãos estão a esperar alguma coisa de mim. E não só eles, também o povo da Guiné-Bissau”.
"Aqui não é minha terra"
Os mais de 4.500 refugiados reconhecidos pelo Governo do Brasil enfrentaram uma longa jornada para escapar das mais variadas perseguições políticas, religiosas e étnicas. Omar está no Brasil há sete anos e já tem residência permanente. Ele é agente de saúde pública em São Paulo. Por motivos de segurança, ele não relata por que teve de deixar a República Democrática do Congo.
“Eu sempre falo isso. Aqui não é a minha terra. A minha terra é a minha terra. A minha terra é incomparável e vai permanecer comigo. Mas estou aqui. Estou batalhando para ter a minha vida. Se hoje não, amanhã, se não amanhã, depois de amanhã, eu voltarei”, diz Omar.
Para isso, ele defende que os governantes africanos precisam se preocupar mais com as necessidades da população. “Os políticos devem purificar a consciência e aprender o que é o amor. Sabe amor? Eles não têm.”
Mãe dos africanos
A jornalista Diop desembarcou no Porto de Santos, no litoral de São Paulo, há 11 anos. Alvo de ameaças por seu trabalho em uma rádio popular na região conflituosa de Casamança, no Sul do Senegal, foi obrigada a fugir.
“No Senegal, há muitos problemas. É a Guerra Fria que as pessoas não reconhecem. Estou contente com o povo brasileiro, que é muito gentil. Sinto-me como se estivesse em casa. Eu sei que tive mais oportunidades dos que muitos africanos que foram para a Europa”, diz.
Diop vende roupas, capulanas, colares e estatuetas do Senegal na Praça da República, no centro de São Paulo. Duas brasileiras a ajudam no pequeno comércio. Para ela, todo africano ou brasileiro que precisa de ajuda no Brasil é como um novo filho.
“Hoje eu trato dos africanos que chegam. Sou como uma mãe. Eu sou uma escrava de Deus e de todo o mundo que precisa de ajuda. Tenho dois quartos, uma sala, cozinha e casa de banho. Tenho colchões para as pessoas dormirem. Se há alguém com problemas, eu dou-lhe comida e mantimentos. A pessoa não paga eletricidade, nem água, nem o quarto. Não paga nada. É tudo feito por mim e pelo meu marido”, explica.
Diop diz que, apesar da perseguição que sofreu, ama o Senegal. E é grata à acolhida que recebeu no Brasil. “Cada país representa uma mãe. Nunca uma pessoa pode falar que não gosta da própria mãe. Eu gosto muito do meu país, mas aqui no Brasil tenho coisas que não tenho lá. Eu tenho liberdade. Eu amo muito o Brasil”.
(*) Nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados.