A ideia de criação de um "centro interpretativo" dedicado a Salazar não é bem acolhida por muitos portugueses anti-fascistas, mas também por muitos africanos, oriundos das antigas colónias residentes em Portugal.
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A contestação está expressa numa petição endereçada ao primeiro-ministro português, António Costa, por um grupo de cidadãos que diz “não” ao projeto lançado pelo presidente (socialista) da Câmara Municipal de Santa Comba Dão, município da região Centro de Portugal, onde nasceu António de Oliveira Salazar.
Joaquim Carvalho, engenheiro químico angolano de 65 anos a residir em Portugal, não se esquece daquele período crítico da ditadura salazarista, marcado por perseguições, torturas e assassinatos de elementos ligados aos movimentos anti-colonialistas que se bateram pela independência dos países africanos de língua portuguesa.
O empresário conta à DW que, durante o período colonial, quando ainda era estudante no Liceu Nacional Salvador Correia, em Angola, foi com 14 anos uma das vítimas do regime de Salazar: "Estive detido durante 24 horas até que fui entregue ao meu pai, porque não tinha ainda 16 anos. Isto, de facto, demonstra a crueldade do regime da época. Eu fui detido simplesmente por falar de história de Angola, não por falar em independência."
"As pessoas não sabem quem foi Salazar"
Por esta e muitas outras razões, Joaquim Carvalho é uma das vozes contra o Museu Salazar. Para ele, no tempo em que vivemos sem referências, constitui um perigo avançar-se com a ideia do referido museu concebido para uma figura que ele qualifica de "tenebrosa".
"Uma coisa seria um museu da resistência, que falaria naturalmente da ditadura. Agora, estamos a falar de um museu de um personagem com objetivos turísticos, concerteza, mas vai ser vendida à população uma figura perigosa e que a maior parte da população deste país ignora, sobretudo das pessoas com menos de 40 anos ignoram. Maioritariamente, as pessoas não sabem quem foi Salazar", refere Joaquim Carvalho em entrevista à DW África.
Lembra que os traumas do salazarismo ainda existem tanto em Portugal como nas ex-colónias em África. E, por isso, afirma ser "um perigo que as pessoas possam obter uma imagem romântica de um ditador que foi responsável pela prisão e morte de muitos cidadãos portugueses e africanos".
"Recordar o passado, para que não se repita"
Alice Goretti Pina nasceu depois das independências dos anos 70. Ela faz parte da jovem geração que não sofreu as amarras da ditadura militar de Salazar. A estilista e escritora são-tomense, formada em Direito e especializada em Criminologia, tem uma posição muito clara em relação a esta questão: "Podia dizer logo à partida que sou contra, porque um museu, de alguma maneira, seria uma homenagem a alguém que, por tudo aquilo que fez, não seria digno de uma homenagem. Por outro lado, dependendo da forma como o museu for organizado, do espólio que estiver ali representado, para que as pessoas possam consultar/visitar e terem – principalmente quem não viveu aquela época – uma ideia do que é que tudo aquilo significou do regime ditatorial, talvez seja positivo se as pessoas souberem interpretar o significado do museu na perspetiva de que é algo a recordar para que não se repita."
"Foi Salazar o responsável pela guerra colonial"
Enquanto historiadora, Joacine Katar Moreira acha que "não se pode omitir nem invisibilizar nenhuma das figuras" da História de Portugal e dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP).
"Mas isto é completamente diferente de homenagear ditadores que foram responsáveis por regimes políticos que causaram imenso sofrimento. E estas homenagens não são minimamente inocentes num ambiente igual a este em que há uma afirmação cada vez maior de ideologias ultra conservadoras, neo-fascistas", refere Joacine Moreira.
A ativista anti-racista guineense lembra: "Foi Oliveira Salazar o responsável pela guerra colonial, foi o regime fascista que rejeitou todas as reivindicações insurrecionistas e independentistas dos angolanos, dos guineenses, dos moçambicanos, etc."
Africanos em Portugal contra o projeto de "Museu Salazar"
Mas, numa altura em que os afrodescendentes e alguns setores da sociedade portuguesa exigem que se fale nas escolas e nos meios de comunicação social da violência colonial, Joacine Moreira contesta que se esteja simultaneamente com ideias de constituição de um museu que homenageia a história mais recente do colonialismo português e em relação à qual ainda há imensas feridas.
Joacine Moreira, dirigente do Instituto da Mulher Negra em Portugal, considera que insistir em enaltecer figuras como Oliveira Salazar "é uma tentativa de naturalizar uma altura de perseguição violenta de inúmeras pessoas devido aos seus posicionamentos ideológicos".
Tarrafal: O Campo da Morte Lenta
O Campo de Concentração do Tarrafal foi, nas palavras do cabo-verdiano Pedro Martins, "um sítio planificado para fazer sofrer as pessoas". Os presos políticos que por aí passaram recordam-no como "Campo da Morte Lenta".
Foto: DW/Madalena Sampaio
Bastião de tortura
Construído numa das regiões mais agrestes de Cabo Verde, o Campo de Concentração do Tarrafal foi, nas palavras do então preso político cabo-verdiano Pedro Martins, “um sítio planificado, desenhado e construído para fazer sofrer as pessoas”. Para os detidos que por aí passaram, o local ficará para sempre nas suas memórias como o “Campo da Morte Lenta" devido ao regime a que eram submetidos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Colónia para desterrados
Situada no concelho do Tarrafal, na ilha cabo-verdiana de Santiago, começou por chamar-se Colónia Penal. Entre 1936 e 1954 recebeu presos políticos portugueses desterrados pelo Governo do Estado Novo. Reabriu em 1961 para aí serem internados militantes anti-regime das colónias portuguesas de Angola, Cabo Verde e Guiné.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Inspirado nos campos nazis
O modo de funcionamento do Tarrafal e a forma como eram tratados os presos eram semelhantes aos de outros campos de concentração existentes no mundo. Castigos, tortura, trabalhos forçados, má alimentação e falta de assistência médica faziam parte do dia-a-dia dos detidos. A maior parte das detenções era feita de forma arbitrária.
Foto: DW/Madalena Sampaio
“Não estou aqui para curar”
Doenças como o paludismo e a biliose ceifaram muitas vidas no Tarrafal. O pequeno posto de socorro aí existente, dividido em duas salas, também servia de casa mortuária. “Não estou aqui para curar, mas para passar certidões de óbito”, afirmava Esmeraldo Pais Prata, o médico do campo que tinha a alcunha de “Tralheira”. Gostava de assistir aos espancamentos e a dor dos presos deixava-o indiferente.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Ala dos presos cabo-verdianos
Os primeiros presos políticos de Cabo Verde foram internados no Tarrafal em 1968. O espaço onde estavam detidos era de tal modo exíguo que se tinham de acomodar "como sardinhas enlatadas”, recorda Pedro Martins, que foi detido quando tinha apenas 19 anos. Ao fundo da sala ficava a casa-de-banho, onde através de um transístor clandestino escutavam várias emissoras. Era a famosa "rádio retrete".
Foto: DW/Madalena Sampaio
Sobreviver à alimentação
Era nesta cozinha que eram preparadas as refeições dos presos. Segundo os detidos, a alimentação era “péssima” e muito pouco diversificada. “Cachupa com uns vestígios de atum era-nos servida diariamente”, descreve Pedro Martins no livro “Testemunho de um Combatente”. Quando se recusavam a comer peixe estragado, “que nem os cães seriam capazes de comer”, o diretor mandava cortar-lhes as refeições.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Quotidiano duro
Nos dias de faxina, os detidos eram obrigados a carregar água em latas suspensas por um fio de arame. E também tinham de carregar a água para lavar as suas roupas para as tinas de betão armado. “Às vezes escasseava a água e tínhamos que a racionar”, lê-se no livro “Testemunho de um Combatente”. Nos meses mais quentes, a temperatura nas celas facilmente ultrapassava os 40 graus.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Testemunhos de sobreviventes
Na antiga cela dos presos políticos angolanos, uma exposição dá a conhecer os rostos de quem sobreviveu ao “Campo da Morte Lenta”. E testemunhos de Angola, Moçambique e Cabo Verde. “A ideia principal era: vim para aqui e não sei se sairei daqui”, lê-se no poster do angolano Vicente Pinto de Andrade, que esteve aqui encarcerado entre 1970 e 1974, juntamente com o seu irmão Justino Pinto de Andrade.
Foto: DW/Madalena Sampaio
A temida "Frigideira"
Também conhecida como “câmara de torturas”, a “Frigideira” era uma caixa rectangular em cimento armado, dividida ao meio, com proporções para conter dois homens. Tinha uma porta em chapa de ferro com cinco pequenos furos na base, em cada divisória, e uma pequena grade de ferro no topo esquerdo. A temperatura aqui podia chegar aos 60 graus, segundo os detidos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Tortura na “Holandinha”
No lugar da “Frigideira” foi construída outra cela disciplinar, "pouco mais alta que um homem em pé", com uma pequena janela de grades. Segundo os presos, era um “autêntico forno” onde não tinham capacidade de movimentos. A este cubículo de cimento, que ficava dentro de um espaço anexo à cozinha, deu-se o nome de “Holandinha”, numa referência ao país para onde partiam muitos cabo-verdianos.
Foto: DW/M. Sampaio
Comunicação entre presos
A muito custo, os nacionalistas africanos das colónias conseguiam, por vezes, comunicar entre si. Com a ajuda de alguns guardas “infiltrados”, os presos cabo-verdianos enviavam bilhetes aos angolanos que estavam do outro lado do campo, a quem também procuravam aliviar o sofrimento quando estes eram enviados para a “Holandinha”. Tudo feito sob uma “pressão enorme”, recordam hoje os presos.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Estudar atrás das grades
No recinto existia também esta biblioteca, cuja instalação foi autorizada ainda na década de 40. Muitos camponeses aprenderam a ler e a escrever no Tarrafal. Segundo o cabo-verdiano Pedro Martins, quase todos os detidos na sua ala passaram a estudar e organizavam-se até horários de estudo. Os presos com mais instrução chegaram a dar formação política aos restantes companheiros.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Vítimas mortais
A detenção no Tarrafal custou a vida a 36 presos políticos: 32 portugueses, dois angolanos e dois guineenses. Entre as vítimas mortais de origem lusa inclui-se Bento Gonçalves, então secretário-geral do Partido Comunista Português (PCP). Entretanto, vários outros morreram já depois da sua libertação, em consequência dos maus tratos e das condições de vida no campo de concentração.
Foto: DW/Madalena Sampaio
O dia da libertação
Foi por aqui que saíram os últimos presos do Tarrafal, no dia 1 de maio de 1974, uma semana depois da Revolução dos Cravos em Portugal. “O Tarrafal era uma prisão para o resto da vida. Se não fosse o 25 de Abril iríamos morrer todos lá”, afirmou o angolano Joel Pessoa. Nessa altura, a libertação dos presos políticos era uma das principais exigências da população.
Foto: DW/Madalena Sampaio
Espaço meio abandonado
O campo do Tarrafal só foi definitivamente extinto em 1975. Acabaria por ser transformado em Museu da Resistência, em 2009. Atualmente, o espaço-símbolo da resistência anticolonialista encontra-se em estado de semi-abandono e sem grandes cuidados. Entretanto, o Governo cabo-verdiano constituiu uma comissão para preparar a candidatura do campo a Património Mundial da UNESCO.