Depois de muitos anos de espera, começaram a ser realojados os primeiros moradores do degradado Bairro da Jamaica, no Seixal, sul de Portugal. Mas as novas casas, algumas em "péssimas condições", não agradam a todos.
Publicidade
Os primeiros 187 moradores do degradado bairro de Vale de Chícharos, conhecido por Bairro da Jamaica, na margem sul de Lisboa, já vivem em vários locais do concelho em 64 novas casas atribuídas pela Câmara Municipal do Seixal, fruto da parceria com a Santa Casa da Misericórdia e o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana.
Este é o início de um processo que decorrerá até 2022, visando o realojamento de 234 famílias recenseadas, constituídas na sua maioria por imigrantes oriundos dos países africanos de língua portuguesa, que ocuparam o bairro ilegalmente na década de 90.
João Domingos Francisco, conhecido por "tio João", está satisfeito com a nova casa de dois quartos, que partilha com a filha de 19 anos. "Se hoje me apareceu esta oportunidade, tenho de a agarrar", conta o imigrante angolano, que viveu mais de 20 anos em condições precárias no Bairro da Jamaica.
Africanos realojados: Entre a alegria e a desilusão
João Francisco acredita que, com a nova casa, o seu estilo de vida vai melhorar bastante. Ele faz parte das primeiras famílias do lote 10, no bairro de Vale de Chícharos, que receberam casa nova. O ato simbólico de entrega das chaves foi a 21 de dezembro e contou com a presença do primeiro-ministro português, António Costa.
O objetivo é a integração destas famílias na malha urbana do concelho, evitando a criação de novos bairros sociais, reafirmou o presidente da Câmara Municipal do Seixal, Joaquim Santos. "Estamos já a trabalhar para apresentar uma nova proposta ao Governo para outro núcleo com dimensão no concelho, que é Santa Marta de Corroios, com cerca de 150 famílias", revelou.
Muitas reclamações
Esta primeira fase de realojamento "correu muito bem", diz Dirce Noronha, da comissão de moradores. Mas têm surgido muitas reclamações devido às condições de algumas casas, apesar disso ter sido antes ponderado com os responsáveis da autarquia.
"Há casas mesmo em péssimas condições. Uma vez que não sabiam para onde é que iam antes, não tinham visto a casa, as pessoas ficaram um bocadinho surpreendidas com as muitas casas em péssimas condições, com problemas de humidade, com móveis degradados", conta Dirce Noronha. "E há pessoas com problemas de locomoção, pessoas com problemas de saúde que estão nesses prédios que não ajudam muito", acrescenta.
Uma das descontentes é Clarinda Otília, que tem no seu agregado a mãe de mais de 80 anos de idade. Esta moradora, natural de São Tomé e Príncipe, tem sérios problemas de saúde e recebeu uma casa numa cave, com problemas de humidade.
"A casa não tem condições adequadas. Está tudo cheio de água a escorrer pela janela. E é um sítio muito isolado, que só dá tristeza", lamenta Clarinda Otília, que tem dormido em casa de uma amiga ou em casa da irmã. "Se dormir aqui, durmo no sofá. Aquilo não é quarto para ninguém", diz a inquilina, que pede à autarquia uma habitação mais digna.
Segundo a presidente da Associação para o Desenvolvimento Social de Vale de Chícharos (ADSVC), Dirce Noronha, os problemas foram apresentados por carta à Câmara Municipal do Seixal e serão analisados numa reunião, para corrigir e evitar, no futuro, as falhas ocorridas nesta primeira fase de realojamento. "A Câmara também falhou nesse sentido. Falhou a inspeção das casas antes de elas serem ocupadas pelas pessoas", critica.
"Lugar não chega para os filhos que tenho"
Enquanto decorre a demolição do lote 10, cujos trabalhos iniciados em dezembro de 2018 estão agora suspensos por ordem judicial, é com esperança que a família Coxi aguarda pela próxima ação de realojamento. Fernando e Julieta Luvunga, mais os filhos e netos, que ocupam um espaço no prédio 13, serão os próximos beneficiários.
"As casas serão compradas e com uma garantia que daqui a três meses poderemos ter uma casa condigna, da nossa preferência. Isso é que nós esperamos", afirma Fernando Luvunga. Um motivo de alegria também para a esposa. "Fico contente porque o sítio onde vivemos é muito apertado. A minha filha dorme com o miúdo no sofá. E o outro miúdo, que está fora, às vezes vem e fica também no outro sofá. O lugar não chega para estes filhos que eu tenho."
Agora, a família Coxi tem a certeza que o Bairro da Jamaica, habitado na sua maioria por africanos, vai deixar de existir quando todos os moradores forem realojados até 2022, de acordo com as previsões.
Bairro da Jamaica na margem sul de Lisboa: A prolongada esperança
A Urbanização do Vale de Chícharos no Seixal, concelho do distrito de Setúbal (Grande Lisboa), acolhe, na sua maioria, imigrantes dos países africanos de língua portuguesa. Há quem viva no bairro há mais de 20 anos.
Foto: J. Carlos
Décadas à espera de realojamento
Os prédios inacabados, propriedade da Urbangol, uma sociedade sedeada num paraíso fiscal com dívidas ao fisco, foram ocupados por pessoas de baixa renda que não tinham condições para comprar uma casa. Aguardam, ao longo destes anos, pela promessa de realojamento por parte da autarquia local.
Foto: J. Carlos
Arte e desabafo por um bairro melhor
Por uma das entradas do Jamaica, os visitantes são recebidos por estes murais pintados na parede que cerca a instalação de transformadores da EDP, Energias de Portugal. As pinturas expõem os sentimentos de mudança e a visão do mundo por parte dos artistas que aspiram viver em um bairro melhor.
Foto: J. Carlos
Os ídolos Bob Marley e Che Guevara
O lendário músico jamaicano Bob Marley ou o líder guerrilheiro argentino-cubano Che Guevara são uma espécie de ídolos para os jovens artistas autores destas pinturas. Ao longo da parede, que funciona como uma tela, veem-se outros motivos, incluindo a reprodução de um bairro típico imaginário em África.
Foto: J. Carlos
Falta de água e de luz
Nos cafés ou em outro ponto de encontro e de convívio, os moradores acabam por falar e questionar sempre sobre os inúmeros problemas com que se deparam no dia-a-dia. A falta de água e de saneamento básico ou os cortes de luz pela empresa fornecedora quando não são pagas as faturas coletivas constituem uma dor de cabeça diária.
Foto: J. Carlos
Mas, na hora de matar a fome…
Enquanto não vem uma solução para o realojamento, a vida não para no Jamaica. Aos fins de semana, a música ajuda a acalentar os problemas. Os grelhados à moda dos países de origem, preparados neste caso pela são-tomense Vitória Silva, servem para matar a fome depois de um dia de trabalho árduo.
Foto: J. Carlos
… Pratos típicos juntam amigos
Percorrendo o território adjacente, encontram-se vários espaços anexados como este, adaptados para café e ou restaurantes, são uma das fontes de rendimento familiar. Os pratos típicos de África, sobretudo à base de peixe e banana, recheiam as mesas dos clientes provenientes de sítios diversos e servem de pretexto para reunir amigos.
Foto: J. Carlos
Cultivar para render
Em uma pequena parcela do terreno à volta, há moradores com alguma experiência agrícola que improvisaram hortas com variedades de hortaliças para consumo próprio. Plantam couves, alfaces, tomates, cebolas, alhos e batatas, entre outros produtos que ajudam a aliviar as despesas com a alimentação.
Foto: J. Carlos
Produzir para sobreviver
Também com o mesmo objetivo, a criação de galinhas reforça a dieta alimentar caseira. Para alguns dos moradores desempregados ou não, esta é uma das formas para suprir as muitas dificuldades de sobrevivência quando é baixo o rendimento familiar.
Foto: J. Carlos
Desemprego, droga e prostituição inquietam
O desemprego é um dos males que inquietam jovens mães como Vanusa e Aurora Coxi. Dizem que os habitantes são, de certo modo, discriminados quando procuram emprego pela fama desmerecida de aqui morarem. Isso leva muitos jovens a seguir por caminhos impróprios, do roubo, do tráfico de droga ou da prostituição. Ambas têm um sonho: acabar a universidade, interrompida por dificuldades diversas.
Foto: J. Carlos
Inundação e humidade
A estes problemas juntam-se as condições de habitabilidade nos prédios, que afetam a maioria das mais de 800 pessoas aqui residentes. Júlio Gomes, guineense que mora num anexo improvisado na parte traseira de um dos prédios, é afetado pela inundação quando chove ou quando rompe a canalização do sistema de esgotos do vizinho do andar de cima.
Foto: J. Carlos
Acesso à tarifa social de eletricidade
Os moradores estão em conflito com a empresa que fornece eletricidade (EDP), porque o critério de cobrança não é o mais adequado. É a associação do bairro que recebe o dinheiro dos consumos mensais e paga as faturas únicas por lote, consoante a leitura no contador colocado em cada prédio. Mas há quem não pague. Os clientes reclamam por não beneficiarem de tarifa social.
Foto: J. Carlos
Sede a precisar de reabilitação
Na sede da Associação para o Desenvolvimento Social da Urbanização de Vale de Chícharos, onde vive uma família, as inundações também constituem um incómodo quando chove. Aqui têm lugar as reuniões para discutir os problemas que afetam os residentes, entre os quais o realojamento. Reabilitar o espaço, onde também funcionam aulas de alfabetização, é uma solução em stand by por falta de recursos.
Foto: J. Carlos
Parque infantil inseguro
Ao lado da sede está um pequeno parque infantil, igualmente sem as condições mínimas de segurança para as crianças brincarem. Os poucos equipamentos nele existentes estão em mau estado de conservação e utilização. Este é, entretanto, um dos poucos espaços de lazer que dispõem para descarregar energia e preencher o tempo.
Foto: J. Carlos
Ação social imprescindível
A CRIAR-T – Associação de Solidariedade tem prestado serviço útil à comunidade, já lá vão mais de 15 anos. As suas várias valências permitem, além de apoio social, acolher crianças enquanto os pais vão trabalhar. Porque «é um perigo elas andarem pelo bairro a brincar», diz Dirce Noronha, presidente da Associação para o Desenvolvimento de Vale de Chícharos.