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CriminalidadeAlemanha

Alemanha: Crime racista aguarda veredito 32 anos depois

Andrea Grunau
8 de outubro de 2023

O migrante ganês Samuel Kofi Yeboah morreu num incêndio com contornos criminosos em Saarlouis, na Alemanha, em 1991. Mais de 32 anos depois, um ex-neonazi vai conhecer a sua sentença pelo envolvimento no crime.

Manifestantes pedem justiça no caso de Samuel Kofi Yeboah perante o Tribunal Regional Superior de Koblenz, onde decorre o julgamentoFoto: Thomas Frey/dpa/picture alliance

Nove anos e meio de prisão para um assassino racista ou quatro anos e meio para alguém que procurava validação entre os skinheads neonazis violentos? Esta é a discrepância entre os fundamentos da acusação e da defesa, após onze meses de julgamento perante o Tribunal Regional Superior da cidade alemã de Koblenz. Um processo que também abordou a onda de ataques xenófobos na Alemanha no início da década de 1990, a ligação em rede de extremistas de direita no país e no estrangeiro, e as falhas por parte da polícia e dos políticos. Um processo que poderia ser um sinal para as pessoas afetadas pela violência e por perpetradores ligados à extrema-direita.

Os representantes do Ministério Público Federal analisaram as provas que confirmam as acusações contra Peter S., de 52 anos, pelo assassinato de Samuel Kofi Yeboah, imigrante do Gana, em 1991, bem como a tentativa de homicídio de outras 20 pessoas e a responsabilidade pela plantação de um incêndio inspirado por convicções nacionalistas e racistas. A defesa nega as acusações e a decisão dos jurados é esperada a 9 de outubro.

Na altura dos factos, o réu fazia parte da cena skinhead neonazi em Saarlouis, uma cidade de 35 mil habitantes em Saarland, no extremo oeste da Alemanha. De acordo com a acusação, ele teria entrado furtivamente na casa de um requerente de asilo na noite de 19 de setembro de 1991, espalhado gasolina nas escadas de madeira do edifício e ateado fogo. Tudo aconteceu por volta das 3h30 da madrugada. Ali viviam refugiados do Gana, Nigéria, Costa do Marfim, Mauritânia, Sudão e antiga Jugoslávia.

Samuel Kofi Yeboah faleceu em 1991, vítima de um crime com contornos racistasFoto: Andreas Engel

Testemunha corajosa

"O motivo do crime foi a xenofobia", disse o Procurador público Malte Merz. A acusação baseou-se em interrogatórios de membros da cena neonazi, no comportamento de Peter S. após o crime e no depoimento de uma testemunha, o que desencadeou novas investigações em 2019.

O réu teria contado à referida testemunha, durante um churrasco em 2007, sobre o incêndio criminoso: "Fui eu e nunca me apanharam", terá dito. Quando a testemunha percebeu que alguém tinha morrido por causa do incêndio, denunciou o caso à polícia – apesar do medo de vingança.

"Tendo em conta a gravidade do assassinato, pedimos uma pena de prisão severa para proporcionar uma compensação justa", disse o Procurador Malte Merz, que pede nove anos e meio, ou seja, quase a pena máxima de dez anos no direito penal juvenil - uma vez que na altura dos factos, Peter S. tinha 20 anos.

Já os advogados de defesa pedem uma pena de prisão significativamente mais baixa, de quatro anos e meio – por cumplicidade. Segundo o advogado Guido Britz, o seu cliente não cometeu o crime e não agiu por motivos racistas. Na época, Peter S. era novo na cena skinhead neonazi. No entanto, durante as buscas das autoridades, foram encontradas imagens desumanas em chats usados pelo réu, bem como uma foto em que está a usar um uniforme da Schutzstaffel (SS), uma organização paramilitar ligada ao Partido Nazi e a Adolf Hitler.

Depois de inicialmente negar qualquer responsabilidade durante o julgamento, o réu pediu ao advogado de defesa que explicasse que tinha estado presente no incêndio criminoso na casa dos requerentes de asilo. Mas teria sido Heiko Sch., um outro neonazi, a usar gasolina e a atear o fogo. Heiko Sch. rejeitou a acusação. O Ministério Público Federal está agora a investigar tanto esse novo elemento, como o então líder da cena skinhead de Saarlouis, Peter St..

Peter S. durante uma sessão do julgamento em KoblenzFoto: Thomas Frey/dpa/picture alliance

Peter St. está sob custódia, Heiko Sch. permanece livre. Na noite anterior ao crime, os três homens (Peter S., Peter St. e Heiko Sch.) ingeriram álcool num restaurante e falaram sobre os ataques de motivação racista contra estrangeiros na Alemanha Oriental.

Nas alegações, os representantes da Procuradoria e da co-acusação relembraram a noite do incêndio, bem como o homem assassinado: Samuel Kofi Yeboah, na altura com 27 anos, lutou pela vida na noite de 19 de setembro de 1991, quando foi apanhado pelo fogo num sótão ocupado por requerentes de asilo. "Estou a morrer, estou a morrer", terá gritado, segundo colegas de quarto que conseguiram escapar pelas janelas, varandas ou escadas de incêndio.

Quando o jovem de 27 anos foi levado pelos bombeiros, todo o seu corpo estava queimado. Samuel Yeboah morreu, momentos depois, fruto de um processo agónico e doloroso já no hospital.

Trauma dos sobreviventes

Os sobreviventes nunca mais conseguiram esquecer aquela noite de setembro. Até hoje, algumas pessoas não suportam ver fogo ou ouvir o som da madeira a estalar enquanto arde.

As vítimas deste vil ataque esperaram por justiça durante décadas. Após o crime, a polícia não conseguiu produzir conclusões sobre a autoria do mesmo e os criminosos mantiveram-se incólumes. Das 20 vítimas, sete não foram, entretanto, localizadas pelas autoridades e apenas 13 puderam testemunhar o que aconteceu 32 anos antes perante as autoridades judiciais.

O crime de homicídio não tem prazo de prescrição na Alemanha. No entanto, mais de três décadas depois é muito difícil produzir novas provas relacionadas com a cena do crime.

"Isso foi há muito tempo", disse uma das 94 testemunhas da cena neonazi da época que citaram lacunas nas suas memórias para se escusarem a aprofundar os seus depoimentos. Uma pessoa chegou mesmo a dizer que não esperava que o seu passado associado à extrema-direita a voltasse a assombrar.

Os juízes alertaram repetidamente as testemunhas para a importância de contarem a verdade quando surgiram contradições flagrantes em relação a outras declarações. Ninguém tem de se incriminar a si próprio ou a familiares próximos, mas todos têm de dizer a verdade em tribunal. Duas testemunhas estão a ser investigadas por prestarem declarações falsas e não juramentadas, confirmou o Ministério Público de Koblenz à DW.

Extrema-direita violenta e bem relacionada

Várias testemunhas da cena neonazi disseram que os ataques a estrangeiros eram "celebrados” naquela época. A Procuradora-ajunta, Kristin Pietrzyk, perguntou a uma testemunha sobre a reação a outros ataques incendiários, como em Mölln ou Solingen: "Ardeu novamente, ótimo." "Mesmo que pessoas morressem?" "Sim." "O réu também?" "Sim, ele achou que era bom." "Nem mesmo quando as crianças são queimadas?" "Não."

O sentimento de remorso parece, para muitos, não existir.

A polícia usou esta foto de Samuel Kofi Yeboah, cerca de 30 anos após o ataque, para pedir pistas sobre os perpetradores do crimeFoto: Landespolizeipräsidium Saarland

O artigo jornalístico "Terror of the Skins" (ou "Terror dos cabeça rapada", na traduç]ao literal para o português), de 1986, publicado na revista alemã Stern, mostrou o quão violenta era a cena neonazi na época. Um skinhead de Saarlouis falou sobre o assassinato brutal de um jovem turco em Hamburgo: "Os skinheads que fizeram isso fizeram a coisa certa pela única vez nas suas vidas."

O submundo da extrema-direita na Alemanha e no estrangeiro fazia-se interligar através de panfletos, telefonemas, concertos e marchas. Há fotos de Peter S. e de outros destacados membros neonazis numa marcha em memória do deputado de Hitler, Rudolf Heß, em Worms, em 1996.

Na altura, bandas assumidamente neonazis faziam concertos e escapavam à atuação das autoridades.

Mas a investigação sobre o ataque incendiário em Saarlouis é um sinal de esperança para todas as vítimas e pessoas afetadas pelos ataques na década de 1990, disse o Procurador público Malte Merz.

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