Morte de Inocêncio de Matos continua à espera da justiça
Lusa
10 de novembro de 2022
Inocêncio de Matos foi morto há dois anos durante uma manifestação, em Luanda, quando Angola celebrava 45 anos de independência. Até hoje os responsáveis não foram levados à justiça e a família não sabe porquê.
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Era um "Dia da Dipanda" especial, em que Angola comemorava 45 anos de independência, conquistada após 14 anos de guerra contra a potência colonial portuguesa, mas a Covid-19 tirou brilho às celebrações daquele 11 de novembro, em 2020.
O ponto mais alto foi a inauguração de um hotel nacionalizado pelo Presidente angolano, João Lourenço, à mesma hora que se acercava das ruas de Luanda uma manifestação não autorizada devido às restrições da pandemia. Mesmo assim, milhares de jovens quiseram expressar o seu descontentamento com as condições de vida, juntando-se a um protesto que acabou ensombrado pelos confrontos entre polícia e manifestantes, várias detenções e a morte do estudante de 26 anos.
Laura Macedo, ativista e uma das organizadoras da marcha que teve lugar nesse dia, tem acompanhado a família desde então e continua também à espera que se faça justiça. "Senti-me um bocado responsável por aquilo e acompanhei (a família). A verdade tem de vir ao de cima, nós temos de lutar pela verdade", exigiu, numa entrevista à Lusa.
Sobre as circunstâncias em que se deu a morte de Inocêncio de Matos "Beto" permanecem as interrogações.
Testemunhas falam em agressão
Testemunhas oculares dizem que o estudante foi atingido na cabeça por uma bala quando a polícia tentava travar o avanço dos jovens manifestantes e morreu no local. Um médico contou, no entanto, outra versão ao canal público televisivo angolano (TPA), segundo a qual o jovem chegou com vida ao hospital, mas não sobreviveu a uma intervenção cirúrgica.
Neste relato, o universitário, que frequentava o curso de Engenharia Informática da Universidade Agostinho Neto, teria sido atingido na cabeça por um "objeto contundente" que poderá ter sido "um pau, um pedaço de metal, de ferro".
A polícia, por sua vez, descartou responsabilidades e afirmou que Inocêncio teria caído quando fugia dos agentes, que não usaram munições reais.
Os resultados da primeira autópsia não foram aceites pela família, que pediu um segundo exame independente, com a presença de um fotógrafo. Segundo o seu advogado, Zola Bambi, tudo aponta para que o ferimento que causou a morte de Inocêncio de Matos tenha sido provocado por um projétil, coincidindo com a versão das testemunhas.
"A única certeza que temos é que a versão da polícia não é a correta, a primeira versão que a polícia traz a público é que o Inocêncio bateu com a cabeça no lancil, ninguém bate com a nuca no lancil", comentou Laura Macedo, junto do Mural da Cidadania, onde uma pintura imortalizou Inocêncio de Matos ao lado de outros defensores dos direitos humanos e da liberdade.
"Queremos que sejam apresentados os autores, a polícia tem de saber, foi a polícia que pôs os homens na rua, tem de saber quem tinha balas, quem estava naquele momento a travar os manifestantes", reclamou a ativista angolana, enquanto os processos movidos pela família emperram na justiça.
Laura Macedo lembra que "os miúdos" que participavam no protesto se tinham ajoelhado e levantado as mãos "para mostrar que não tinham nada a ocultar". "Foi nessa posição que o Inocêncio foi atingido, há testemunhas", frisou.
A ativista apontou também as consequências da tragédia sobre a família, "que ficou muito dividida", entre os "do sistema" que tentaram abafar o caso e outros parentes que admitem ter sofrido pressões.
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Família "profundamente abalada"
A casa de Luanda, no bairro de São Pedro da Barra, onde vivia Inocência, foi abandonada, a família dispersou e Alfredo de Matos, o pai de Inocêncio, falou à Lusa a partir do Namibe, onde se encontra atualmente a residir e a trabalhar, lamentando que os assassinos de Inocêncio estejam em liberdade.
"Temos estado envolvidos numa série de diligências, vários contactos, mas infelizmente continua na mesma", afirmou, assumindo que a família ficou "profundamente abalada" e "traumatizada" com a perda de "um menino" com quem todos contavam.
As cartas que escreveu à Assembleia Nacional e ao Presidente da Republica não tiveram resposta. "Ninguém se importa em fazer justiça pela morte do meu filho. Não há vontade dos órgãos de justiça em proceder à justiça, as autoridades angolanas não querem fazer justiça", desabafou.
A somar ao sentimento de injustiça, disse terem sofrido "insultos da parte de alguns indivíduos", provavelmente ligados ao caso, e que foram "de certo modo" pressionados. "Uma série de obstáculos no processo, inviabilização no atendimento, somos atendidos de maneira ríspida, quase ninguém se dispõe a falar sobre o assunto, uma serie de situações", apontou.
Para Laura Macedo, o fatídico acontecimento não mudou a maneira como a polícia reage nas manifestações, que passaram praticamente a ser impedidas.
"A polícia pura e simplesmente não permite as manifestações, aborta as manifestações a partir dos bairros de onde vêm os manifestantes. Os poucos que conseguem chegar ao local de concentração são presos. Tivemos várias prisões antes das eleições, incluindo pessoas que nem estavam em manifestações", denunciou.
A ativista afirmou que as eleições deixaram "mágoa e tristeza" junto de muitos angolanos e só por isso não apareceu ainda "a força interior" para se promoverem novos protestos, pois "motivos não faltam".
Inocêncio de Matos é homenageado na sexta-feira junto à Igreja de São Domingos, com uma iniciativa que reúne amigos, familiares e ativistas num evento que terá depoimentos, música e declamação de poesia.
Um encontro que Laura Macedo espera também que marque o final do período de reflexão pós-eleitoral para "voltar à ação". "A polícia e o Governo sabem o que têm de fazer, têm de aceitar, têm de ser democratas", apelou.
Angola: 16 polémicas que marcaram a governação de João Lourenço
Com o fim do mandato de cinco anos à espreita, passamos em revista algumas das polémicas que têm marcado a governação do Presidente João Lourenço, da corrupção ao desemprego, com centenas de exonerações pelo caminho.
Foto: picture-alliance/dpa/AP Images/J.-F. Badias
"Operação Caranguejo"
Nesta operação, a justiça apreendeu milhões de dólares, euros e kwanzas na posse de oficiais da Casa de Segurança do PR, suspeitos de peculato, retenção de moeda e associação criminosa. Mais de 10 oficiais, incluindo o ministro de Estado e Chefe da Casa de Segurança do Presidente, Pedro Sebastião, foram exonerados. Pedro Lussaty, chefe das finanças da banda musical da Presidência, foi detido.
Foto: DW/B. Ndomba
Viagem polémica ao Dubai
Viagem privada de João Lourenço, em março de 2021, ao Dubai suscitou polémica. As opiniões dividiram-se, mas a visita foi vista por alguns cidadãos em Angola como oportunidade de JLo acertar as contas com o seu antecessor, José Eduardo dos Santos, e uma possível negociação com a empresária Isabel dos Santos. No início do mandato, Lourenço acusou o antecessor de deixar os cofres do Estado vazios.
Foto: Imaginechina/Tuchong/imago images
Investigação Pangea-Risk
Um relatório da consultora Pangea-Risk associa João Lourenço, a mulher, Ana Dias Lourenço, e um círculo próximo a alegadas práticas de fraude, corrupção e peculato, em violação de leis e regulamentos dos EUA. Menciona subornos que teriam sido pagos pela Odebrecht a empresas ligadas ao Presidente de Angola. A construtora brasileira desmentiu o relatório e negou alegados pagamentos indevidos.
Caso Edeltrudes Costa
Segundo uma reportagem da TVI, o "braço direito" e chefe de gabinete de João Lourenço terá sido favorecido pelo Governo em contratos públicos com a sua empresa de consultoria EMFC. O negócio de prestação de serviços terá valido a Edeltrudes Costa vários milhões de euros. A seguir à denúncia, manifestantes saíram à rua pedindo a sua demissão. PGR estaria ainda a "apurar dados para investigar".
Foto: Xinhua/Imago Images
Filha na administração da BODIVA
Cristina Dias Lourenço, filha de João Lourenço, foi indigitada em 2020 pela ministra das Finanças para o cargo público de administradora executiva da Bolsa de Dívida e Valores de Angola (BODIVA). A nomeação foi criticada pela sociedade civil, havendo quem falasse em nepotismo e tráfico de influência que manchavam, assim, os princípios da boa governação e transparência propagados pelo Governo.
Foto: picture-alliance/W. Ying
Nomeação de Manuel da Silva "Manico"
Manuel da Silva Pereira "Manico" foi empossado como presidente da Comissão Nacional Eleitoral em fevereiro de 2020, entre muitos protestos da oposição e da sociedade civil que o acusam de "falta de idoneidade moral e legal" ao cargo e falam num concurso pouco transparente. A tomada de posse foi aprovada apenas pelo MPLA, sem os partidos da oposição. O jurista estaria arrolado em caos de corrupção.
Foto: DW
Caso Manuel Vicente | "Operação Fizz"
Conhecido como "Operação Fizz", assenta na acusação de que o ex-vice-Presidente, Manuel Vicente, corrompeu o ex-procurador português Orlando Figueira com o pagamento de 760 mil euros para que arquivasse dois inquéritos em que estava a ser investigado. Acusado dos crimes de corrupção ativa e branqueamento de capitais, tem estado protegido pela imunidade dada a antigos governantes por cinco anos.
Foto: Getty Images
Caso IURD Angola
O conflito interno na IURD Angola começa quando um grupo de dissidentes angolanos decide afastar-se da direção brasileira da igreja com alegações de crimes como evasão de divisas e racismo. Na justiça angolana tramitam vários processos judiciais e missionários brasileiros foram deportados do país. Em maio de 2021, a direção da IURD anunciou nova liderança apenas composta por cidadãos angolanos.
Foto: DW/J.Beck
Lixo em Luanda
O problema do lixo na capital angolana não é novo e parece não ter fim à vista. No período das chuvas, a situação agrava-se colocando em "guerra aberta" moradores descontentes e a governadora Joana Lina, acusada de má gestão. João Lourenço criou uma comissão multissectorial para apoiar o Governo de Luanda a resolver os problemas inerentes à acumulação, recolha e tratamento do lixo.
Foto: Manuel Luamba/DW
Cafunfo e o silêncio do Presidente
Um "massacre" na vila de Cafunfo, na Lunda Norte, chocou o país, a 30 de janeiro de 2021. Violentos confrontos entre a polícia e manifestantes resultaram em dezenas de feridos e mortes. Com a região debaixo de fogo, o incidente mereceu atenção internacional enquanto João Lourenço se remetia ao silêncio - que não passou despercebido. O PR falou pela primeira vez sobre o caso a 2 de março.
Foto: Borralho Ndomba/DW
Protestos e repressão policial
Um pouco por todas as províncias, os protestos têm pintado as ruas do país com cartazes e palavras de ordem. Muitos ficaram marcados por forte repressão das forças de segurança e terminaram em detenções, feridos e até mortes como foi o caso do jovem Inocêncio de Matos, que perdeu a vida na sequência de ferimentos graves durante protestos na capital em novembro de 2020, ou do médico Sílvio Dala.
Foto: DW/Borralho Ndomba
Desculpas públicas pelo 27 de Maio
Volvidas mais de quatro décadas do massacre de 27 de Maio de 1977, Luanda quebrou o silêncio. João Lourenço reconheceu que a resposta do Estado ao que considerou ser uma tentativa de golpe foi desproporcional e vitimou inclusive inocentes. Pediu desculpas públicas às vítimas e aos familiares e encorajou outros atores que participaram nos conflitos políticos a terem o mesmo procedimento.
Foto: Borralho Ndomba/DW
Adiamento das autárquicas
Na primeira reunião do Conselho da República depois das eleições de 2017, João Lourenço levou a proposta aos conselheiros: realizar as primeiras eleições autárquicas do país em 2020. Mas tal não aconteceu e não existe, até então, previsão de uma data. Os motivos alegados vão desde a Covid-19 à falta de conclusão do Pacote Legislativo Autárquico. Analistas falam em falta de vontade política.
Foto: António Domingos/DW
Desemprego
A criação de 500 mil postos de trabalho foi uma das promessas eleitorais de JLo em 2017 e os angolanos não se esquecem disso. Apesar da aprovação, em abril de 2019, do Plano de Ação para Promoção da Empregabilidade, com um fundo de 58 milhões de euros, os números do desemprego no país geram descontentamento no povo que sai às ruas para exigir mais oportunidades e melhores condições de vida.
Foto: DW/M. Luamba
Envolvimento no caso "Dívidas Ocultas"
O Presidente viu o seu nome associado ao escândalo das "Dívidas Ocultas" de Moçambique pela EXX Africa. A consultora denunciou a alegada ligação entre a empresa Privinvest e o Governo de Angola quando João Lourenço era ministro da Defesa. O Ministério da Defesa de Angola terá feito um contrato de 495 milhões de euros para comprar barcos e capacidade de construção marítima à Privinvest.
Foto: Privinvest
"Exonerador implacável"
Na sua "cruzada contra a corrupção", João Lourenço ficou conhecido como o "exonerador implacável". Logo no primeiro de cinco anos de mandato, 2017, afastou governantes, chefias militares, gestores de empresas públicas e antigas figuras associadas ao anterior regime de José Eduardo dos Santos. Isabel dos Santos e José Filomeno dos Santos, filhos do antigo Presidente, foram dois dos muitos visados.