Angola: Inquérito a professores admite falta de liberdade
Lusa
8 de março de 2017
Estudo de Domingos da Cruz mostra que 33% docentes admitem poder ser perseguidos e mortos por dedicar-se à ciência. Maioria dos inquiridos desconhece a existência de qualquer lei angolana sobre liberdade académica.
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O estudo "Democracia Académica e Liberdade Científica em Angola", do professor universitário e investigador Domingos da Cruz, indica que a liberdade académica não é discutida entre a maioria (60%) dos docentes e que 33% admitem poder ser perseguidos e mortos por dedicar-se à ciência com rigor.
O trabalho, a que a Lusa teve hoje acesso, é lançado oficialmente a 14 de março, através da Internet. O estudo resultou de inquéritos a 102 docentes de oito universidades das províncias de Luanda, Huíla e Namibe, maioritariamente nas áreas de Ciências Humanas e Sociais, sobre a visão dos professores da liberdade científica e constrangimentos que "põem em causa a liberdade académica”.
"Não me sai da cabeça o facto de muitos professores nem sequer terem noção de que existem em Angola instrumentos jurídicos que os protegem do ponto de vista da liberdade científica. Isso para mim foi chocante. Um jornalista tem que ter consciência que a sua arma é a liberdade de expressão, o mesmo se aplica ao professor, em que a sua arma é a liberdade científica”, disse à Lusa Domingos da Cruz. O académico foi um dos 17 ativistas condenados há um ano, pelo tribunal de Luanda, por atos preparatórios de rebelião e associação de malfeitores.
Docentes desconhecem lei
Segundo os dados resultantes de 17 perguntas, 53% dos professores inquiridos assumiram desconhecer a existência de qualquer lei angolana sobre liberdade académica e 23% admitirem conhecer pelo menos um aluno perseguido por agir com rigor científico. Os dados indicam ainda que 33% confirmaram temas de fim de curso que são impostos aos estudantes por razões partidárias.
"São números altíssimos e é por isso que afirmo que se traduz naquilo a que eu chamo o ciclo do medo. Também explica, de alguma maneira, o nosso estado de estagnação civilizacional, de acordo com os valores universais e dos direitos humanos. Existem mesmo muitos professores que nem sequer discutem sobre o assunto”, aponta Domingos da Cruz, garantindo tratar-se do primeiro trabalho nacional sobre liberdade académica.
"Não o refiro no relatório, mas o meu caso é um exemplo deste cenário que temos em Angola, no mundo académico. Aliás, a prisão por que passei resulta da tentativa de exercer a minha liberdade científica”, acrescenta o professor universitário.
Domingos da Cruz é autor do livro "Ferramentas para destruir o ditador e evitar uma nova ditadura” que, para o tribunal de Luanda, justificou, em 2016, a condenação de 17 ativistas angolanos, incluindo o 'rapper' luso-angolano Luaty Beirão.Os ativistas conhecidos como o grupo dos "15+2", foram detidos em junho de 2015 por participarem em reuniões, em Luanda, nas quais liam o livro de Domingos da Cruz.
O professor universitário foi condenado à pena mais grave, em cúmulo jurídico a oito anos e seis meses de prisão, como líder do grupo. Domingos da Cruz e os restantes condenados chegaram a cumprir, entre prisão preventiva e efetiva, quase um ano de cadeia, até serem libertados no final de junho de 2016, e amnistiados três meses depois.
Professor do ensino superior em Angola desde 2011, Domingos da Cruz não chegou a regressar à universidade de Luanda onde exercia funções quando foi detido. "A instituição informou-me que há recomendações para que eu não possa voltar a lecionar, pelo que não tenho qualquer possibilidade de lecionar numa instituição angolana, sob recomendação do regime.”
Faltam infraestruturas para pesquisa
O estudo de Domingos da Cruz conclui que "não existe demanda da parte da comunidade académica para com o Governo”, para "promover a democracia académica e a pesquisa científica”.
Para além do "ciclo do medo, criado pelo Governo e que inviabiliza o florescimento da pesquisa, não existem condições materiais” e faltam "infraestruturas para a pesquisa e investigação”.
"Inúmeras pesquisas individuais, não chegam à esfera pública porque os seus autores receiam represálias”, conclui o relatório.
Julgamento dos 15+2 em imagens
Foi um julgamento envolto em polémica. 17 ativistas angolanos foram condenados a entre 2 e 8 anos de prisão por atos preparatórios de rebelião. Os críticos falam em "farsa judicial". Veja aqui momentos-chave do processo.
Foto: picture-alliance/dpa/W. Kumm
Julgamento polémico
Os 15+2 ativistas angolanos, acusados de atos preparatórios de rebelião, foram condenados a entre 2 e 8 anos de prisão efetiva. A defesa e ativistas de direitos humanos denunciam que o processo foi marcado por várias irregularidades. O julgamento começou logo com protestos, a 16 de novembro. Um ativista escreveu na farda prisional "Recluso do Zédu". Observadores internacionais ficaram à porta.
Foto: DW/P.B. Ndomba
#LiberdadeJa
Antes e durante o julgamento, foram muitos os pedidos de "liberdade já!" para os ativistas angolanos. Essas foram também as palavras de ordem de uma campanha nas redes sociais pela libertação dos jovens a que se associaram músicos, escritores, ativistas e muitos outros cidadãos de dentro e fora de Angola.
Foto: Reuters/H. Corarado
"Justiça sem pressão"
Fora do tribunal, um grupo de manifestantes jurou acompanhar o julgamento dos 15+2 até ao fim. Vestiram-se a rigor com t-shirts brancas de apoio ao sistema judicial angolano, com os dizeres "Justiça sem Pressão" - "Estamos aqui a favor da Justiça, visto que Angola é um Estado soberano e que os tribunais têm o seu papel, com o qual nós estamos solidários", disse um dos manifestantes.
Foto: DW/P. Borralho
Irregularidades no processo
Em dezembro, os ativistas enviaram uma carta ao Presidente angolano onde apontavam irregularidades no processo. Os jovens queixavam-se, por exemplo, das demoras, da falta de acesso ao processo por parte da defesa antes do início do julgamento e da impossibilidade de manter contato visual com a procuradora Isabel Nicolau (na foto). Eram ainda denunciados casos de agressão física e psicológica.
Foto: Ampe Rogério/Rede Angola
Dois dias a ler o livro de Domingo da Cruz
"Ferramentas para Destruir o Ditador e Evitar Nova Ditadura". É este o título do livro escrito pelo ativista Domingos da Cruz, inspirado no livro "Da Ditadura à Democracia", do pacifista norte-americano Gene Sharp. Segundo a acusação, era este o manual dos ativistas para preparar uma rebelião. O livro foi lido na íntegra durante dois dias no Tribunal de Luanda.
Foto: DW/Nelson Sul D´Angola
"Governo de Salvação Nacional" é "embuste"
Dezenas de personalidades angolanas integram uma lista, divulgada online, de um "Governo de Salvação Nacional". Esse seria um Executivo que assumiria o poder em Angola após a rebelião pensada pelos ativistas, segundo a acusação. Vários declarantes faltaram à chamada e várias sessões tiveram de ser adiadas. Um dos declarantes, Carlos Rosado de Carvalho, disse que o suposto Governo era um "embuste".
Foto: DW/P. Borralho
Prisão domiciliária
A 18 de dezembro, 15 ativistas, detidos desde junho, passaram ao regime de prisão domiciliária. Laurinda Gouveia e Rosa Conde permaneceram em liberdade condicional. O tribunal autorizou os detidos a receber visitas de familiares e amigos. No entanto, não foi permitido qualquer contato com membros do "Movimento Revolucionário" e do "Governo de Salvação Nacional".
Foto: DW/P. Borralho Ndomba
"Este julgamento é uma palhaçada"
Numa das sessões do julgamento, os ativistas levaram vestidas t-shirts com autocaricaturas como palhaços. Nito Alves disse em tribunal que o julgamento era uma palhaçada. Foi julgado sumariamente por injúria e condenado a 6 meses de prisão efetiva. Ativistas alertam que o estado de saúde de Nito Alves é grave e que Nito foi transportado numa maca para o tribunal de Luanda para ouvir a sentença.
Foto: Central Angola 7311
Nuno Dala em greve de fome
Como forma de reinvindicar o acesso a contas bancárias e entrega de pertences, Nuno Dala entrou em greve de fome a 10 de março. Gertrudes Dala, irmã do ativista, lamentou a reação da sociedade civil e a defesa alertou para a situação financeiramente "delicada" da família. Outros ativistas também passaram por dificuldades durante a prisão domiciliária.
Foto: DW/P.B. Ndomba
Ativistas são condenados
O tribunal de Luanda condenou, a 28 de março, os 17 ativistas angolanos. Domingos da Cruz, tido como "líder", deverá cumprir 8 anos e 6 meses de prisão efetiva. Luaty Beirão foi condenado a 5 anos e 6 meses. Rosa Conde e Benedito Jeremias foram condenados a 2 anos e 3 meses de prisão. Os restantes foram condenados a 4 anos e 6 meses. A defesa e o Ministério Público vão recorrer da decisão.
Foto: picture-alliance/dpa/P. Juliao
"Dia triste para a liberdade de expressão"
"Este é um dia muito triste para a liberdade de expressão e de associação", disse Ana Monteiro, da Amnistia Internacional, reagindo às sentenças. "Não deveria ter existido sequer um julgamento. Estamos a falar de cidadãos angolanos que estavam reunidos a falar sobre liberdade e democracia". Zenaida Machado, investigadora da HRW, considerou a condenação ridícula.