Presidente de Angola não falou das suas estratégias de governação na inédita conferência de imprensa, lembra Paulo Inglês. O sociólogo questiona alguns pronunciamentos de João Lourenço e expõe as suas contradições.
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Já há angolanos que aguardam por mais do que discursos do novo Presidente. O sociólgo angolano Paulo Inglês é um deles. Embora reconheça que a conferência de imprensa que João Lourenço deu nesta segunda-feira (08.01.) seja inédita na governação do país, critica alguns pronunciamentos. Pedimos uma avaliação sobre a conferência ao sociólogo e investigador na Universidade de Bayreuth, aqui na Alemanha:
DW África: Por si só, a conferência de imprensa é suficiente para se entender que há uma intenção da nova Presidência de uma maior aproximação ao cidadão:
Paulo Inglês (PI): Se isso vai levar a uma maior aproximação ou um contacto mais estreito com o cidadão é uma coisa em aberto. Mas o que é certo é que é inédito, pelo menos nos últimos trinta anos muito dificilmente vimos uma sessão de perguntas com o Presidente da República, inclusive entre ministros. Por isso, neste aspeto é algo novo.
DW África: João Lourenço mostrou também abertura para ser fiscalizado pelo Parlamento. Há alguns anos o Tribunal Constitucional pôs termo a essa possibilidade. Como vê essa intenção de abertura sendo que isso implicaria, a princípio, uma revisão constitucional pontual ou a declaração desta decisão do tribunal como inconstitucional?
PI: Pois, aqui é que está o problema porque a questão é que o Tribunal Constitucional fez uma interpretação da lei, a questão é se é possível fazer outra interpretação que permita isso. E por outro lado, é ambíguo porque, segundo o Tribunal Constitucional, o Executivo não é obrigado a ser fiscalizado, não há uma obrigação. A questão é se necessário mexer na Constituição ou se era um bloqueio ad-hoc para não beliscar a autoridade do chefe de Estado na altura.
DW África: João Lourenço considerou uma ofensa a forma como a Justiça portuguesa está a conduzir o caso Manuel Vicente. Ele tem a esperança que acordos judiciários no âmbito da CPLP sejam cumpridos. Entretanto, várias remodelações estão a ser feitas também na Justiça angolana. Isso poderá servir de voto de confiança para as autoridades portuguesas?
Conferência de Imprensa de João Lourenço - Reações
DW África: É que o Presidente entrou numa contradição, por um lado disse que se sentiu ofendido pelo facto de Portugal ter dito que não confia na Justiça angolana. Mas por outro lado o Presidente também disse que uma das causas da corrupção era a impunidade. Ora, a impunidade tem a ver com a aplicação da lei, e isso é do âmbito dos tribunais. Então, funciona ou não? E outro ponto: ele disse que não queria meter-se no trabalho dos tribunais, o que queria simplesmente, imagino que por uma questão de patriotismo e dignidade, uma vez que ele foi vice-Presidente, que [Manuel Vicente] fosse julgado em Angola. Mas lá está, foi um crime cometido em Portugal.
DW África: João Lourenço espera que José Eduardo dos Santos abandone a liderança do MPLA ainda este ano, conforme prometeu. O pronunciamento pode ser um sinal de que a continuidade de José Eduardo dos Santos não é tão salutar para a governação do país e para João Lourenço?
PI: As pessoas falam em bicefalia, mais política do que propriamente jurídica. É que se o presidente do MPLA deixar o partido este ano isso quer dizer que o Presidente da República não terá de se confrontar com essa ambiguidade, entre cumprir um programa do partido desenhado por um presidente que não seja ele. É como se o Presidente da República fosse constitucionalmente o mais alto dirigente, mas politicamente fosse menos que o presidente do partido. Então, a ideia é tirar essa ambiguidade.
DW África: Angola vive também uma profunda crise social, com altas taxas de desemprego, serviços de saúde e educação bastante precários. Ainda não vimos João Lourenço focar a devida atenção neste campo...
PI: No fundo essa crise sempre existiu.O problema é que não era tão visível porque havia sempre dinheiro disponível que comaltava os efeitos. Portanto, João Lourenço não enfrentou [este campo) porque ele disse que a sua prioridade é relançar a economia. Ora bem, a grande questão é que o Presidente não nos disse como quer fazer essas reformas. Disse que quer combater a corrupção e impunidade, não tocou questões de fundo, repetiu lugares comuns, que é preciso colocar os interesses nacionais acima de interesses particulares, mas não disse que estratégias tem.
José Eduardo dos Santos deixará saudades?
Dos Santos anunciou no início de 2017 que deixará o poder ao fim de 38 anos. Será que os angolanos terão saudades? Os comícios e as manifestações no país e fora de Angola nos últimos anos não deixam chegar a um consenso.
Foto: Getty Images/AFP/A. Pizzoli
Setembro de 2008 - Luanda
Este comício do MPLA em Kikolo, Luanda, foi assistido por milhares de pessoas durante a campanha para as eleições de 2008, as primeiras em 16 anos. O MPLA obteve 82% dos votos, tendo conquistado 191 dos 220 lugares da Assembleia Nacional de Angola.
Foto: picture-alliance/ dpa
Março de 2011 - Angola
No entanto, e apesar da maioria conseguida nas eleições de 2008, nos anos seguintes realizaram-se várias manifestações, em Angola, e não só, contra o Governo. A 7 de março de 2011, teve início no país uma onda de manifestações inspiradas na Primavera Árabe. Na organização destas manifestações estava o Movimento Revolucionário de Angola, também conhecido como "revús".
Foto: picture-alliance/dpa
Março de 2011 - Londres
No mesmo dia (7 de março), cerca de 30 pessoas sairam às ruas em Londres para protestar contra o Presidente José Eduardo dos Santos. Os manifestantes exigiram a saída do pai de Isabel dos Santos gritando "Zédu fora!" e "Zé tira o pé".
Foto: Huck
Fevereiro de 2012 - Benguela
Em 2012, ano de eleições no país, o número de manifestações organizadas pelos não apoiantes de José Eduardo dos Santos continuou a crescer. O protesto retratado na fotografia teve lugar em Benguela, a 13 de fevereiro. "O povo não te quer", gritaram os manifestantes.
Foto: DW
Junho de 2012 - Luanda
A 23 de maio de 2012, o presidente angolano anuncia que as eleições legislativas se irão realizar a 31 de agosto. Sensivelmente um mês depois, a 23 de junho, o Estádio 11 de Novembro, em Luanda, encheu-se de militantes e simpatizantes do MPLA para aplaudir José Eduardo dos Santos e apoiar a sua candidatura.
Foto: Quintiliano dos Santos
Julho de 2012 - Viana
Cartazes a favor de dos Santos num comício da campanha para as eleições de 2012 em Viana, arredores de Luanda. A 31 de agosto, o MPLA vence as eleições com mais de dois terços dos votos. Depois de uma mudança da Constituição, o Presidente já não é eleito diretamente, mas sim indiretamente nas legislativas. Como cabeça de lista do MPLA, José Eduardo dos Santos é eleito Presidente de Angola.
Foto: Quintiliano dos Santos
Maio de 2015 - Benguela
Nos anos seguintes continuaram os protestos contra o Presidente. Foram-se somando episódios de violência e detenções. 2015 torna-se-ia um ano complicado no que às críticas a JES diz respeito. No aniversário do "27 de maio", em Benguela, por exemplo, 13 ativistas foram detidos minutos depois de começarem um protesto. No mesmo dia, também houve detenções em Luanda.
Foto: DW/N. Sul d'Angola
Junho de 2015 - Luanda
Em junho de 2015, tem início um dos episódios da governação de José Eduardo dos Santos mais criticados. 15 ativistas angolanos, entre eles Luaty Beirão, foram detidos sob acusação de planeaream um golpe de Estado. Para além de terem despoletado muitas manifestações, estas detenções tiveram mediatismo um pouco por todo o mundo devido às greves de fome levadas a cabo por muitos dos detidos.
Foto: DW/P. Borralho
Julho de 2015 - Lisboa
No dia 17 de julho realizou-se, em Lisboa, a primeira manifestação em Portugal a favor da libertação destes jovens. "Basta de repressão em Angola", ouviu-se na capital portuguesa. Dias mais tarde, em Luanda, a polícia reagiu violentamente contra algumas dezenas de manifestantes que protestaram no Largo da Independência.
Foto: DW/J. Carlos
Agosto de 2015 - Luanda
A 2 de agosto e sob o lema "liberdade já", cerca de 200 pessoas, entre as quais vários artistas angolanos - poetas, políticos, atores e artistas plásticos - juntaram-se, em Luanda, para pedir a libertação dos 15 ativistas angolanos detidos. Sanguinário, Flagelo Urbano, Toti, Jack Nkanga, Sábio Louco, Zwela Hungo, Mona Diakidi, Dinameni, Fat Soldie e MCK foram alguns dos artistas presentes.
Foto: DW
Agosto de 2015 - Luanda
Dias mais tarde foi a vez das mães dos ativistas se fazerem ouvir. Nas ruas de Luanda, pediram a libertação dos seus filhos, mesmo depois da manifestação ter sido proibida pelo Governo.
Foto: DW/P. Ndomba
Agosto de 2015 - Lisboa
Nem no dia do seu aniversário (28 de agosto), José Eduardo dos Santos teve "descanso". Cidadãos descontentes, quer em Lisboa, quer em Angola, voltaram às ruas. Na capital portuguesa, voltou a pedir-se liberdade para os ativistas. Exigiu-se ainda liberdade de movimento, de pensamento, de expressão e de imprensa em Angola.
Foto: DW/J. Carlos
Novembro de 2015 - Luanda
No dia em que se celebraram os 40 anos da independência de Angola, proclamada a 11 de novembro de 1975, pelo então Presidente António Agostinho Neto, vários jovens voltaram a fazer ouvir-se. 12 manifestantes foram detidos.
Foto: DW/M. Luamba
Março de 2017 - Cazenga
No início de 2017, José Eduardo dos Santos anunciou a saída da Presidência. O cabeça-de-lista do MPLA às eleições gerais deste ano será o atual ministro de Defesa João Lourenço. O candidato foi recebido por centenas de apoiantes naquele que foi o seu primeiro ato de massas da pré-campanha, no município do Cazenga, em Luanda, a 4 de março.