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Sobreviventes do 27 de Maio insistem na reposição da verdade

João Carlos
2 de maio de 2022

Familiares e sobreviventes dos acontecimentos trágicos ocorridos em Luanda, em maio de 1977, insistem que ainda há histórias por desvendar. Sociedade civil exige a criação de uma Comissão da Verdade.

Opositores do regime de Agostinho Neto (foto) foram massacradosFoto: casacomum.org/Documentos Dalila Mateus

A desinformação continua a ser um problema à volta dos acontecimentos do 27 de Maio de 1977, segundo Verónica Leite Castro, que trabalha desde 2017 numa pesquisa independente e colaborativa sobre as pessoas desaparecidas em Angola com base em testemunhos de sobreviventes e familiares das vítimas. 

Para esta luso-angolana, casada com um sobrevivente, "falta desvendar toda a verdade", 45 anos após as atrocidades cometidas pelo regime então vigente, encabeçado por Agostinho Neto, contra os chamados fraccionistas, entre os quais Nito Alves, na altura, ministro da Administração Interna, acusados de uma alegada tentativa de golpe de Estado.

"Por exemplo, aquelas sete pessoas que apareceram mortas e queimadas dentro de uma ambulância no Sambizanga. Eram quase todos comandantes. Nós precisamos de saber o que é que aconteceu àquelas pessoas. Quem foram os mandantes? Porque muitos dos mortos que estavam naquela ambulância até eram amigos de Nito Alves. Foi a partir desse evento que o Presidente Agostinho Neto disse: 'não vai haver perdão, não há julgamentos, vamos atrás dos fraccionistas'. E a partir daí, tomaram como argumento que tinham todo o direito de fazer a repressão. E houve uma série de pessoas que foram presas e mortas", comenta Verónica Castro.

Quem é que mandou matar?

A morte dos comandantes terá provocado a matança do pós 27 de Maio de 1977. Na opinião de Verónica Castro, este é o principal problema que é preciso esclarecer.

José Reis (esq.) e Veronica Carlos (centro) participaram recentemente num debate sobre o 27 de Maio em LisboaFoto: Joao Carlos/DW

"Quando nós soubermos o que é que realmente aconteceu àquelas pessoas, quem é que mandou matar, quem matou, o que fizeram, então nós vamos perceber que se calhar não foram os ditos chamados fraccionistas", diz.

Se a verdade não for reposta, acrescenta Verónica, "as pessoas vão continuar na desconfiança" e "o discurso de discriminação e de ódio contra os que foram mortos naquela altura vai continuar a ser reproduzido para as gerações vindouras. "Assim não conseguimos sarar as feridas. A dor e o sofrimento continuam", afirma.

Joaquim Sequeira, então professor na Escola Comercial 1º de Maio, em Luanda, é uma das vítimas torturadas pelo regime. Entre os vários episódios, também questiona até hoje sobre a morte dos sete comandantes. "É muito importante desvendar a questão da morte dos comandantes", insiste.

"Entretanto, aconteceram coisas estranhíssimas, nomeadamente um dos comandantes – o comandante Petroff –, apanhado para ser morto, é retirado por um indivíduo por estar doente. Ora, se havia gente preparada para matar os comandantes, tanto fazia matá-lo doente como saudável. É uma coisa muito estranha", considera Sequeira.

Criação de uma Comissão da Verdade

Verónica Castro reconhece que hoje parece haver mais abertura, mas lembra o recente discurso de perdão feito pelo Presidente angolano, João Lourenço.

"Há ali algumas frases que remetem para 1977 e que não nos dão confiança. Continua-se a não falar da verdade. A desinformação, não repor a verdade. O Presidente disse que a História não se apaga e a verdade tem de ser assumida por todos. Cada um tem a sua responsabilidade. Então, se a História não se apaga então temos que contar a História para a História não se apagar", avalia Verónica Castro.

Sociedade civil angolana quer a reposição da verdade sobre o 27 de MaioFoto: Joao Carlos/DW

A investigadora diz que se o Governo de Luanda estivesse interessado em dizer a verdade já tinha aberto os arquivos, nomeadamente dos serviços de informação (DISA), da Televisão Pública de Angola (TPA), da Rádio Nacional e do Jornal de Angola. A dificuldade de acesso aos documentos da época também inquieta Verónica Castro, que tem encontrado barreiras para fazer avançar a sua investigação. 

"Sim. Também. Porque as famílias de muitas pessoas que foram mortas no 27 de maio não sabem o que lhes aconteceu. Nunca mais as viram. Não sabem onde é que elas estão. Por onde é que elas passaram, em que prisão estiveram. O que é que lhes aconteceu? Onde é que foram enterradas? Não sabemos", constata Castro. 

"É um trabalho que tem de ser feito pelas autoridades angolanas", apela a ativista angolana.

45 anos a lutar pela verdade 

Aproximando-se o quadragésimo quinto aniversário destes acontecimentos trágicos, a luta dos vários movimentos da sociedade civil continua a ser pela conquista da verdade. 

Por outro lado, de acordo com Verónica Castro, a forma inadequada como as autoridades angolanas estão a tratar a exumação dos corpos constitui uma humilhação para as vítimas e seus familiares. Este processo "não está a correr muito bem", na opinião de José Reis, presidente da Associação 27 de Maio. 

"O conhecimento que tenho de exumações de corpos é que devem ser feitas por antropólogos forenses de pincel na mão. Aquilo não é com uma retroescavadora que se faz. Também sei que estão a ser entregues certidões de óbitos às pessoas onde não está escrita qual é a causa da morte. E mais do que isso, não se entrega uma certidão de óbito sem se entregar os restos mortais. Nada disto está a acontecer. Portanto, vamos ver", diz Reis.

A associação insiste na ideia de criação de uma Comissão da Verdade, até então rejeitada pelo Govero angolano. Rejeição que Joaquim Sequeira não entende: "Quer dizer, se nós procuramos a verdade, porque é que há o receio de se criar a Comissão da Verdade. Nós estamos aqui para encarar a verdade que venha a ser descoberta seja contra quem for. Ora, se o poder instituído não quer criar a Comissão da Verdade é porque tem alguma coisa a esconder".

Antes do perdão e da reconciliação, primeiro vem a verdade, avisa por seu lado José Reis. "Estão a fazer tudo ao contrário", lamenta. "Não posso perdoar sem saber o que é que se passou", afirma.

Francisco Rasgado jamais esquecerá o 27 de maio de 1977

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