Em Angola, um terceiro mandato presidencial implicaria a "alteração da ordem social e constitucional", avalia o jurista Agostinho Canando após declarações do Presidente João Lourenço sobre uma eventual recandidatura.
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Em entrevista recente à rede de televisão francesa France 24, o Presidente angolano João Lourenço remeteu para 2027 qualquer decisão sobre um eventual terceiro mandato.
A resposta do chefe de Estado reacendeu o debate em Angola e a UNITA, principal partido da oposição, já alertou para a possibilidade de "um golpe constitucional".
Em entrevista à DW, o jurista angolano Agostinho Canando sublinha que um terceiro mandato implicaria a "alteração da ordem social e constitucional".
No entanto, Canando considera que "o Presidente João Lourenço o seu partido têm quase tudo na mão para que ele venha a concorrer a um terceiro mandato".
DW África: Que leitura faz da recente resposta de João Lourenço quando questionado sobre a eventualidade de um terceiro mandato?
Agostinho Canando (AC): Ele respondeu de forma quase que lacônica, a dizer que ainda é prematuro falar de um terceiro mandato. Mas com essa resposta, deu vazão a alguma possibilidade de ele vir a concorrer para um terceiro mandato, o que já seria um descalabro para a política a nível nacional.
Por enquanto, a nossa Constituição prevê apenas dois mandatos de cinco anos cada. O que quer dizer que, se por acaso, daqui até 2026, se abrir essa possibilidade de vir a concorrer a um terceiro mandato, poderá gerar não só debates, mas, sobretudo, a alteração da ordem social e constitucional, porque muitas vozes estão contra um possível terceiro mandato. Até porque sabemos que a República de Angola é uma república que existe apenas desde 1975.
Então, Angola precisa mesmo de crescer com novos cérebros, novas pessoas e não necessariamente ficarmos 10, 15, 30 anos com a mesma pessoa. Já está um pouco ultrapassada essa ideia de ter que se perpetuar no poder.
DW África: E uma revisão constitucional seria possível até 2027?
AC: Implicaria uma revisão constitucional por conta do artigo 237 da Constituição da República de Angola, que nos diz que temos o poder na revisão constitucional no mínimo de cinco em cinco anos, e com a revisão pontual que já foi feita em 2021, quer dizer que deverá se passar no mínimo cinco anos, isto é, 2026, para fazer a alteração da Constituição a seu favor.
Então, se essa revisão constitucional for feita a partir ou no ano de 2026, faltaria um ano para as eleições, o que reacenderia ainda mais a possibilidade de vir a dar um descalabro a nível social e constitucional.
DW África: Entretanto, perante o debate que se gerou, a UNITA já deixou claro que o Presidente não conta com o partido para aquilo que consideram ser um assalto à Constituição…
AC: Digamos que ele já tem a boleia do partido que governa, porque estão em maioria. E quer a UNITA queira quer não, de qualquer das formas, a não ser que a UNITA tome as devidas providências, o que o partido não poder decidir vai ser feito, infelizmente, porque tem maioria no Parlamento. De qualquer das formas, em princípio, o Presidente João Lourenço o seu partido têm quase tudo na mão para que ele venha a concorrer a um terceiro mandato.
DW África: Acredita que João Lourenço teria apoio do MPLA lá para um terceiro mandato?
AC: Em princípio, sim. Também por conta daquela bicefalia que foi existindo já há algum tempo entre as duas alas que na verdade dizem que não existem entre Ala Lourenço e Ala Santos. Claro que um partido tem uma disciplina partidária, tem um estatuto por cumprir.
Angola: Terceiro mandato de João Lourenço alteraria "ordem social"
De qualquer das formas, há uma necessidade de abranger a todo o mundo. E se o Estatuto diz que, por exemplo, tudo o que os indivíduos de lá dentro do partido fizerem deve ser em prol do partido, possivelmente poderá contar com o apoio do primeiro, por ser ele o número um do partido, e depois por conta daquilo que são os interesses do partido.
DW África: Um terceiro mandato poderia ser prejudicial para a imagem de João Lourenço, por exemplo, internacionalmente, tendo já Angola o historial de um presidente que ficou mais de 30 anos no poder?
AC: Quer queiramos quer não, a comunidade internacional tem acompanhado os destinos de vários países africanos, europeus e não só. E quando se trata, por exemplo, de Angola, já se sabe que os problemas são sempre esses de impunidade e de perpetuação no poder, nos cargos. Isso se falarmos, por exemplo, a nível municipal, provincial, distrital, que temos sempre a mesma situação. Então a imagem que será deturpada não será apenas do Presidente, mas também do país a nível da comunidade internacional.
Angola: 16 polémicas que marcaram a governação de João Lourenço
Com o fim do mandato de cinco anos à espreita, passamos em revista algumas das polémicas que têm marcado a governação do Presidente João Lourenço, da corrupção ao desemprego, com centenas de exonerações pelo caminho.
Foto: picture-alliance/dpa/AP Images/J.-F. Badias
"Operação Caranguejo"
Nesta operação, a justiça apreendeu milhões de dólares, euros e kwanzas na posse de oficiais da Casa de Segurança do PR, suspeitos de peculato, retenção de moeda e associação criminosa. Mais de 10 oficiais, incluindo o ministro de Estado e Chefe da Casa de Segurança do Presidente, Pedro Sebastião, foram exonerados. Pedro Lussaty, chefe das finanças da banda musical da Presidência, foi detido.
Foto: DW/B. Ndomba
Viagem polémica ao Dubai
Viagem privada de João Lourenço, em março de 2021, ao Dubai suscitou polémica. As opiniões dividiram-se, mas a visita foi vista por alguns cidadãos em Angola como oportunidade de JLo acertar as contas com o seu antecessor, José Eduardo dos Santos, e uma possível negociação com a empresária Isabel dos Santos. No início do mandato, Lourenço acusou o antecessor de deixar os cofres do Estado vazios.
Foto: Imaginechina/Tuchong/imago images
Investigação Pangea-Risk
Um relatório da consultora Pangea-Risk associa João Lourenço, a mulher, Ana Dias Lourenço, e um círculo próximo a alegadas práticas de fraude, corrupção e peculato, em violação de leis e regulamentos dos EUA. Menciona subornos que teriam sido pagos pela Odebrecht a empresas ligadas ao Presidente de Angola. A construtora brasileira desmentiu o relatório e negou alegados pagamentos indevidos.
Caso Edeltrudes Costa
Segundo uma reportagem da TVI, o "braço direito" e chefe de gabinete de João Lourenço terá sido favorecido pelo Governo em contratos públicos com a sua empresa de consultoria EMFC. O negócio de prestação de serviços terá valido a Edeltrudes Costa vários milhões de euros. A seguir à denúncia, manifestantes saíram à rua pedindo a sua demissão. PGR estaria ainda a "apurar dados para investigar".
Foto: Xinhua/Imago Images
Filha na administração da BODIVA
Cristina Dias Lourenço, filha de João Lourenço, foi indigitada em 2020 pela ministra das Finanças para o cargo público de administradora executiva da Bolsa de Dívida e Valores de Angola (BODIVA). A nomeação foi criticada pela sociedade civil, havendo quem falasse em nepotismo e tráfico de influência que manchavam, assim, os princípios da boa governação e transparência propagados pelo Governo.
Foto: picture-alliance/W. Ying
Nomeação de Manuel da Silva "Manico"
Manuel da Silva Pereira "Manico" foi empossado como presidente da Comissão Nacional Eleitoral em fevereiro de 2020, entre muitos protestos da oposição e da sociedade civil que o acusam de "falta de idoneidade moral e legal" ao cargo e falam num concurso pouco transparente. A tomada de posse foi aprovada apenas pelo MPLA, sem os partidos da oposição. O jurista estaria arrolado em caos de corrupção.
Foto: DW
Caso Manuel Vicente | "Operação Fizz"
Conhecido como "Operação Fizz", assenta na acusação de que o ex-vice-Presidente, Manuel Vicente, corrompeu o ex-procurador português Orlando Figueira com o pagamento de 760 mil euros para que arquivasse dois inquéritos em que estava a ser investigado. Acusado dos crimes de corrupção ativa e branqueamento de capitais, tem estado protegido pela imunidade dada a antigos governantes por cinco anos.
Foto: Getty Images
Caso IURD Angola
O conflito interno na IURD Angola começa quando um grupo de dissidentes angolanos decide afastar-se da direção brasileira da igreja com alegações de crimes como evasão de divisas e racismo. Na justiça angolana tramitam vários processos judiciais e missionários brasileiros foram deportados do país. Em maio de 2021, a direção da IURD anunciou nova liderança apenas composta por cidadãos angolanos.
Foto: DW/J.Beck
Lixo em Luanda
O problema do lixo na capital angolana não é novo e parece não ter fim à vista. No período das chuvas, a situação agrava-se colocando em "guerra aberta" moradores descontentes e a governadora Joana Lina, acusada de má gestão. João Lourenço criou uma comissão multissectorial para apoiar o Governo de Luanda a resolver os problemas inerentes à acumulação, recolha e tratamento do lixo.
Foto: Manuel Luamba/DW
Cafunfo e o silêncio do Presidente
Um "massacre" na vila de Cafunfo, na Lunda Norte, chocou o país, a 30 de janeiro de 2021. Violentos confrontos entre a polícia e manifestantes resultaram em dezenas de feridos e mortes. Com a região debaixo de fogo, o incidente mereceu atenção internacional enquanto João Lourenço se remetia ao silêncio - que não passou despercebido. O PR falou pela primeira vez sobre o caso a 2 de março.
Foto: Borralho Ndomba/DW
Protestos e repressão policial
Um pouco por todas as províncias, os protestos têm pintado as ruas do país com cartazes e palavras de ordem. Muitos ficaram marcados por forte repressão das forças de segurança e terminaram em detenções, feridos e até mortes como foi o caso do jovem Inocêncio de Matos, que perdeu a vida na sequência de ferimentos graves durante protestos na capital em novembro de 2020, ou do médico Sílvio Dala.
Foto: DW/Borralho Ndomba
Desculpas públicas pelo 27 de Maio
Volvidas mais de quatro décadas do massacre de 27 de Maio de 1977, Luanda quebrou o silêncio. João Lourenço reconheceu que a resposta do Estado ao que considerou ser uma tentativa de golpe foi desproporcional e vitimou inclusive inocentes. Pediu desculpas públicas às vítimas e aos familiares e encorajou outros atores que participaram nos conflitos políticos a terem o mesmo procedimento.
Foto: Borralho Ndomba/DW
Adiamento das autárquicas
Na primeira reunião do Conselho da República depois das eleições de 2017, João Lourenço levou a proposta aos conselheiros: realizar as primeiras eleições autárquicas do país em 2020. Mas tal não aconteceu e não existe, até então, previsão de uma data. Os motivos alegados vão desde a Covid-19 à falta de conclusão do Pacote Legislativo Autárquico. Analistas falam em falta de vontade política.
Foto: António Domingos/DW
Desemprego
A criação de 500 mil postos de trabalho foi uma das promessas eleitorais de JLo em 2017 e os angolanos não se esquecem disso. Apesar da aprovação, em abril de 2019, do Plano de Ação para Promoção da Empregabilidade, com um fundo de 58 milhões de euros, os números do desemprego no país geram descontentamento no povo que sai às ruas para exigir mais oportunidades e melhores condições de vida.
Foto: DW/M. Luamba
Envolvimento no caso "Dívidas Ocultas"
O Presidente viu o seu nome associado ao escândalo das "Dívidas Ocultas" de Moçambique pela EXX Africa. A consultora denunciou a alegada ligação entre a empresa Privinvest e o Governo de Angola quando João Lourenço era ministro da Defesa. O Ministério da Defesa de Angola terá feito um contrato de 495 milhões de euros para comprar barcos e capacidade de construção marítima à Privinvest.
Foto: Privinvest
"Exonerador implacável"
Na sua "cruzada contra a corrupção", João Lourenço ficou conhecido como o "exonerador implacável". Logo no primeiro de cinco anos de mandato, 2017, afastou governantes, chefias militares, gestores de empresas públicas e antigas figuras associadas ao anterior regime de José Eduardo dos Santos. Isabel dos Santos e José Filomeno dos Santos, filhos do antigo Presidente, foram dois dos muitos visados.