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PolíticaArgélia

Argélia: Regime em crise após referendo constitucional

Lusa
2 de novembro de 2020

O poder argelino está confrontado com um pesado desafio na sequência de uma abstenção recorde durante o referendo de domingo destinado a edificar uma "nova Argélia" e plebiscitar o Presidente Abdelmadjid Tebboune.

Presidente Abdelmadjid Tebboune Foto: Toufik Doudou/AP/picture alliance

A reforma da Constituição da Argélia foi aprovada com 66,8% dos votos expressos no referendo de domingo, marcado por uma abstenção recorde, anunciou esta segunda-feira (02.11) o presidente da Autoridade Nacional Independente das Eleições (ANIE), Mohamed Charfi.

O não recolheu 33,2% dos votos e a taxa de participação foi de 23,7%, o menor nível de todos os tempos para uma eleição importante.

Menos de um quinto dos eleitores votou a favor da reforma constitucional. Charfi saudou "uma etapa essencial para a construção de uma nova Argélia", notando que "as condições em que se realizou este referendo foram um desafio para qualquer atividade política", numa alusão às restrições ligadas à pandemia da Covid-19.

Entretanto, a taxa de participação final de 23,7% é a mais baixa registada num referendo desde a independência em 1962. Este revés significa uma humilhante punição para o Presidente Abdelmadjid Tebboune, que desencadeou um processo de revisão constitucional logo após a sua controversa eleição em dezembro de 2019, e atualmente hospitalizado na Alemanha. 

Votação para reforma da ConstituiçãoFoto: Ryad Kramdi/AFP/Getty Images

Este resultado, assinala a agência noticiosa AFP, poderá implicar uma nova crise de legitimidade para o regime, e em primeiro lugar pelo facto de a nova Constituição não ter seduzido a população argelina. 

"A nova versão [do texto] não trouxe grande coisa face à antiga Constituição. Estamos numa situação de reprodução do regime", assinalou Cherif Driss, professor de Ciências políticas na universidade de Argel. Esta Constituição não passa de "uma limpeza, de uma cosmética, mas nada mudou no fundo". 

Ausência de interesse

A abstenção recorde confirma que a manifesta ausência de interesse dos argelinos no decurso de uma campanha eleitoral de sentido único, sem debates, sem ter em consideração as posições da oposição. Quem apelou ao boicote e a votarem "não” foi arredado do campo mediático, sublinha a AFP. 

Por fim, a pandemia de Covid-19, também em pleno recrudescimento na Argélia, não alterou a situação, enquanto os seus efeitos económicos e sociais acentuaram o descontentamento popular. 

A taxa de participação significou uma "condenação maciça" e um "revés da decisão política do poder", argumentou Driss, ao frisar que menos de 15% dos eleitores aprovaram esta Constituição. 

"Trata-se de uma nova consolidação do boicote às eleições como a única resposta dos cidadãos. O boicote tornou-se no maior partido político num país desprovido de uma verdadeira base política e partidária", sublinhou Hasni Abidi, diretor do Centro de estudos e de pesquisa sobre o mundo árabe e mediterrânico (CERMAM) em Genebra. 

Protestos contra o Governo em dezembro de 2019Foto: picture-alliance/Abaca/L. Ammi

Movimento contra o regime

O poder político pensava terminar com o "Hirak", a inédita rebelião popular desencadeada em fevereiro de 2019 e que exige uma alteração do sistema político em vigor desde a independência em 1962, mas os seus cálculos saíram errados. 

Na sequência deste resultado, o futuro do Presidente Tebboune, o grande ausente do escrutínio e o principal promotor desta reforma constitucional, permanece uma incógnita. 

O propagador deste projeto, a "pedra angular" da "nova Argélia" permanece hospitalizado num "grande estabelecimento especializado" na Alemanha após o anúncio de casos suspeitos de contágio pelo novo coronavírus entre colaboradores próximos. 

Segundo a Presidência, o seu estado é "estável e não preocupante", mas poucos argelinos acreditam que Tebboune, 74 anos e fumador inveterado, esteja internado por estar infetado com a Covid-19. 

Protesto em Argel, um dia antes das presidenciais em dezembro de 2019 Foto: Getty Images/AFP

Poder enfraquecido

Na hipótese de retomar as suas funções, o Presidente, isolado, deverá "enfrentar uma situação que enfraquece o seu poder", considera o académico Driss, ao considerar que com uma "Constituição com pouco valor" a sua legitimidade será "muito diminuta". 

No atual cenário, vai ser decisiva a reação do regime a esta rejeição em massa e sem precedentes nas urnas. De acordo com o professor de Ciências políticas em Argel, o poder tem duas alternativas. A primeira seria congelar a promulgação do novo texto e iniciar um diálogo sério com as forças sociais do país (partidos políticos, sindicatos, associações independentes), hipótese que considera "muito pouco provável". 

Em alternativa, tentará impor a sua agenda ao validar esta Constituição contra a vontade da esmagadora maioria dos argelinos, com o risco de aprofundar ainda mais o fosso entre a população e os seus dirigentes. 

"O resultado do referendo aprofundou o fosso entre o povo e os decisores do momento. A negação já não constituiu uma opção credível para solucionar a questão central da legitimidade na Argélia", observou Hasni Abidi. 

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