Ao pagar dívidas da Ematum, a sociedade civil desconfia que o Governo quer reforçar a defesa de Jean Boustani. Acha ainda que desrespeita o Conselho Constitucional, que declarou nulas as dívidas. Mas jurista discorda.
Publicidade
Mesmo debaixo de fortes contestações da sociedade civil moçambicana, o Governo pagou uma parcela da reestruturação das dívidas da Ematum, uma das três empresas envolvidas nas dívidas ocultas, estimadas em cerca de dois mil milhões de euros. No total, o valor da reestruturação é de 659,56 milhões de euros, emitidos em 2016, e agora Moçambique desembolsou uma tranche de 36 milhões de euros.
A transação acontece justamente na altura em que decorre o julgamento de um caso de ilícitos financeiros nos EUA ligado às dívidas ocultas. A coincidência, ou não, acirrou as desconfianças da sociedade civil.
Suspeitas de proteção de alegados criminosos
Para Paula Monjane, diretora executiva do Centro de Aprendizagem e Capacitação da Sociedade Civil (CESC), "pagar exatamente neste momento protege e reforça a defesa da empresa que defraudou Moçambique, a Privinvest e seus executivos, porque é no momento crucial em que o julgamento em Nova Iorque estava a acontecer."
"Para mim, isso é um problema", afirma Monjane.
É que um dos acusados no processo norte-americano, Jean Boustani, negociador da Privinvest, está a apoiar-se no facto de o Governo moçambicano estar a reestruturar as dívidas para defender que não houve conspiração para defraudar os investidores que compraram os títulos de crédito da Ematum - afinal, tudo segue de acordo com trâmites legais e Moçambique está a pagar os empréstimos.
Mas Paula Monjane suspeita de razões obscuras por detrás dos desembolsos: "Penso que há várias justificações que podem ser levantadas sobre porque se está a fazer o pagamento, mas, quando percebemos os contornos e as ligações sobre porque se está a pagar e como se está a pagar, fico com a perceção que é para proteger os interesses das pessoas e instituições que receberam suborno e menos em defesa dos moçambicanos."
Há ou não desrespeito pelo Conselho Constitucional?
Em junho de 2019, o Conselho Constitucional (CC) declarou as dívidas da Ematum inconstitucionais e anulou as garantias do Estado emitidas em 2013. Por isso, o pagamento dos 36 milhões pelo Governo é outro ponto que agita a sociedade civil, que entende que houve um desrespeito ao Conselho Constitucional, e o Fórum de Monitoria do Orçamento (FMO) quer agora processar o Executivo.
As dívidas da Ematum e as limitações do Conselho Constitucional
Paula Monjane, que também faz parte do FMO, argumenta que "a decisão do Governo de continuar a pagar a dívida da Ematum, mesmo depois do Conselho Constitucional ter declarado nula, mostra [...] um Estado sem regras."
A diretora do CESC recorda que o CC é uma instituição reconhecida e que, uma vez tomada uma decisão, "não se pode voltar atrás". "Para mim, há uma violação da decisão do Conselho Constitucional e [isso] sugere que estamos num Estado onde as instituições não são respeitadas", comenta Monjane.
Contudo, há quem não interprete de igual forma. Segundo o jurista Elísio de Sousa, "seria desrespeito ao Conselho Constitucional se, de facto, fosse uma obrigação dentro da jurisdição moçambicana. Mas, nos termos do artigo dois do estatuto do Conselho Constituicional, as decisões do CC têm jurisdição apenas sobre Moçambique. E é justo e lógico, é um órgão soberano e a soberania reside dentro de Moçambique."
Respeitar contratos internacionais para bem do Estado
O ministro da Economia e Finanças reiterou na sexta-feira (08.11) que a reestruturação da dívida soberana não contraria o acórdão do Conselho Constitucional. De acordo com Adriano Maleiane, o Governo só está a cumprir o acordo alcançado com os portadores de "eurobonds" e a retoma dos pagamentos é um passo necessário para resolver as implicações legais detetadas pelo CC. O governante entende que se está a fazer de tudo para salvaguardar o Estado.
Neste contexto, o jurista Elísio de Sousa afirma que "o aproveitamento ou não de qualquer ato que seja praticado pelo Governo moçambicano não pode ser imputado ao Governo, porque na verdade o que o Governo está a fazer é cumprir com um contrato internacional ao qual está adstrito."
O especialista alerta para as consequências de incumprimentos: "Nós sabemos que o incumprimento de contratos internacionais por parte do Governo pode trazer consequências muito negativas para a economia do país. E, felizmente, o cumprimento desse contrato não fere nem tão pouco a decisão do Conselho Constitucional."
Elísio de Sousa conclui que, "uma vez que este pagamento não entra na questão da relação internacional prestada pelo Estado moçambicano, não há aqui nenhuma situação, seja ela de incumprimento por parte do Governo ou qualquer ilicitude no pagamento."
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)