Ataques em Mocímboa da Praia são "um grande embaraço" para Moçambique, afirma sociólogo. Para Elísio Macamo, os ataques são cada vez mais ousados e isso pode ser sintomático de uma certa fraqueza das forças de segurança.
Publicidade
Como faziam antigamente os conquistadores para demonstrar o seu domínio de território, os insurgentes içaram a sua bandeira em Mocímboa da Praia, na província nortenha de Cabo Delgado, depois de atacar a vila na segunda-feira (23.03), incluindo o quartel das Forças de Defesa e Segurança (FDS). Certamente um gesto de peso para o Estado moçambicano, que sublinha com frequência a soberania como um bem inviolável.
Bispo de Pemba #explica situação humanitária em Cabo Delgado
01:03
Sobre a mensagem passada pelos insurgentes, o sociólogo Elísio Macamo faz a seguinte leitura: "Acho que o içar da bandeira é um gesto simbólico, que nestas circunstâncias procura transmitir a ideia de que a soberania de Moçambique foi posta em causa e que o grupo que se apropriou da vila passa a ter soberania, mas isso mais numa perspetiva psicológica, que é importante, mas que não nos deve preocupar assim tanto."
O analista justifica que "apesar de tudo, trata-se de um movimento, cujo programa e agenda e intenções são completamente desconhecidos".
"Acho estranho que o grupo ice a bandeira sem, noutras cirscunstâncias, dizer quem é, do que se trata e o que quer", afirma Elísio Macamo.
Das ousadias dos insurgentes à fraqueza das FDS
De qualquer forma, em mais de dois anos de ataques armados, este caso inédito não deixa de ser uma demonstração de força questionável. É caso para dizer que a guerra em Cabo Delgado está a entrar para uma nova fase, mais grave? Elísio Macamo relativiza a questão.
"Eu não creio que a situação esteja a entrar numa nova fase, por duas razões: sabemos muito pouco sobre o que está realmente a acontecer ao nível do conflito, nós não sabemos se há mais agora do que houve há um ano ou dois. E sem esse tipo de informação é muito difícil interpretar o que aconteceu na segunda-feira em termos de recrudescimento", comenta o analista.
Moçambique: Treinar mão-de-obra local para exploração de gás
02:24
This browser does not support the video element.
Contudo, Macamo reconhece: "Esses ataques são cada vez mais ousados e isso pode ser sintomático de uma certa fraqueza das nossas FDS, que em qualquer conflito desta natureza estão em desvantagem. Têm menos mobilidade, porque, afinal, trata-se de um Exército regular que está a lidar com um grupo de insurgentes, que é muito mais flexível e mais móvel - aquela ideia clássica da guerrilha, que leva sempre essa vantagem sobre um Exército regular."
"É um grande embaraço para o Estado moçambicano"
Desde o começo da insurgência, em finais de 2017, que as FDS não conseguem fazer frente aos atacantes e muito menos proteger os símbolos do Estado.
Os insurgentes já chegaram inclusive a fazer incursões à entrada da capital provincial, Pemba, evidenciando, mais uma vez, o seu poder.
O máximo que acontece a cada extremar dos atacantes são as visitas de altos quadros da Defesa ou do Interior, depois da terra queimada, ou discursos moralizantes à população. A ridicularização da soberania moçambicana encenada pelos insurgentes na segunda-feira é a emissão de um atestado de incompetência ao Estado moçambicano?
"Não diria que estamos perante um atestado de incompetência por parte do Estado ou das nossas FDS. [Mas] é verdade que é um grande embaraço para o Estado moçambicano, para o chefe de Estado e para as altas patentes das nossas FDS", responde o académico.
Elísio Macamo apresenta motivos estruturais: "Penso que, no meio de toda a nossa crítica legítima, que nós como moçambicanos devemos fazer em relação ao nosso Governo e FDS, é preciso reconhecer que o país é muito vulnerável."
"Isto não vai mudar simplesmente através de um melhor Exército ou Governo, ou de uma melhor política de defesa. Somos vulneráveis por estarmos na fase de desenvolvimento em que nos encontramos. Este tipo de insurgência vai sempre constituir um grande problema para qualquer país nas circunstâncias de Moçambique", acrescenta Macamo.
Cabo Delgado: Datas marcantes dos ataques armados
Começaram em outubro de 2017 em Mocímboa da Praia e já se alastraram a outros três distritos moçambicanos. Os ataques armados na província de Cabo Delgado, que somam já mais de 130 mortos, ainda não têm solução à vista.
Foto: DW/G. Sousa
Outubro de 2017
Os primeiros ataques de grupos armados desconhecidos na província de Cabo Delgado aconteceram no dia 5 de outubro de 2017 e tiveram como alvo três postos da polícia na vila de Mocímboa da Praia. Cinco pessoas morreram. Cerca de um mês depois, a 17 de novembro, as autoridades dão ordem de encerramento a algumas mesquitas por se suspeitar terem sido frequentadas por membros do grupo armado.
Foto: Privat
Dezembro de 2017
Surgem novos relatos de ataques nas aldeias de Mitumbate e Makulo, em Mocímboa da Praia. Na primeira semana de dezembro de 2017, terão sido assassinadas duas pessoas. Vários suspeitos foram identificados, tendo os moradores dado conta que os atacantes deram sinais de afiliação muçulmana. Por sua vez, a polícia desmentiu o envolvimento do grupo terrorista Al-Shabaab nestes ataques.
Foto: DW/G. Sousa
Janeiro a maio de 2018
Apesar de ter começado calmo, 2018 revelar-se-ia um ano de terror na província de Cabo Delgado com os ataques a alastrarem-se a mais distritos. Dada a gravidade da situação, a Assembleia da República aprovou, a 2 de maio, a Lei de Combate ao Terrorismo. Mas, no final do mês, dia 27, novos ataques foram realizados junto a Olumbi, distrito de Palma. Dez pessoas morreram, algumas decapitadas.
Foto: Privat
2 de junho de 2018
Dias mais tarde, a televisão STV dava conta que as forças de segurança moçambicanas haviam abatido, nas matas de Cabo Delgado, oito suspeitos de participação nos ataques. Foram ainda apreendidas catanas e uma metralhadora AK-47, além de comida e um passaporte tanzaniano. Por esta altura, já milhares de pessoas haviam abandonado as suas casas, temendo a repetição dos episódios de terror.
Foto: Borges Nhamire
4 de junho de 2018
Ainda se "festejava" os avanços na investigação das autoridades, e consequente abate dos suspeitos quando, a 4 e 7 de junho, se registaram novos incêndios nas aldeias de Naunde e Namaluco. Sete pessoas morreram e quatro ficaram feridas. Foram ainda destruídas 164 casas e quatro viaturas. O mesmo cenário voltou a repetir-se a 22 de junho: um novo ataque na aldeia de Maganja matou cinco pessoas.
Foto: Privat
29 de junho de 2018
Fortemente criticado por não se ter ainda pronunciado acerca dos ataques, o Presidente moçambicano Filipe Nyusi resolve fazê-lo, em Palma, perante um mar de gente. Oito meses e 33 mortos [25 vítimas dos ataques e oito supostos atacantes] depois... Em Cabo Delgado, Nyusi prometeu proteção aos cidadãos e convidou os atacantes a dialogar consigo, de forma a resolver as suas "insatisfações".
Foto: privat
Agosto de 2018
Depois de, em julho, um novo ataque à aldeia de Macanca - Nhica do Rovuma, em Palma, ter feito mais quatro mortos, Filipe Nyusi desafiou, a 16 de agosto, os oficiais promovidos no exército, por indicação da RENAMO, a usarem a sua experiência no combate contra estes grupos armados que, mais tarde, a 24 do mesmo mês, tirariam a vida a mais duas pessoas, na aldeia de Cobre, distrito de Macomia.
Foto: Jinty Jackson/AFP/Getty Images
Setembro de 2018
Setembro de 2018 voltava a ser um mês negro no norte de Moçambique. Ataques nas aldeias de Mocímboa da Praia, Ntoni e Ilala, em Macomia, deixaram pelo menos 15 mortos e dezenas de casas destruídas. No final do mês, o ministro da Defesa, Atanásio Mtumuke, afirmou que os homens armados responsáveis pelos ataques seriam "jovens expulsos de casa pelos pais".
Foto: Privat
Outubro de 2018
Um ano após o início dos ataques em Cabo Delgado, a polícia informou que os mais de 40 ataques ocorridos, haviam feito 90 mortos, 67 feridos e destruído milhares de casas. Foi também por esta altura que Filipe Nyusi anunciou a detenção de um cidadão estrangeiro suspeito de recrutar jovens para atacar as aldeias. No final do mês, começaram a ser julgados 180 suspeitos de envolvimento nos ataques.
Foto: privat
Novembro de 2018
Novos relatos de mortes macabras surgem na imprensa. Seis pessoas foram encontradas mortas com sinais de agressão com catana na aldeia de Pundanhar, em Palma. Dias depois, o cenário repetiu-se nas aldeias de Chicuaia Velha, Lukwamba e Litingina, distrito de Nangade. Balanço: 11 mortos. Em Pemba, o embaixador da União Europeia oferecia ajuda ao país.
Foto: Privat
6 de dezembro de 2018
A população do distrito de Nangade terá feito justiça pelas próprias mãos e morto três homens envolvidos nos ataques. Na altura, à DW, David Machimbuko, administrador do distrito de Palma, deu conta que "depois de um ataque, a população insurgiu-se e acabou por atingir alguns deles". Entretanto, o Ministério Público juntou mais nomes à lista dos arguidos neste caso. Entre eles está Andre Hanekom.
Foto: DW/N. Issufo
16 de dezembro de 2018
A 16 de dezembro, e após mais um ataque armado no distrito de Palma, que matou seis pessoas, entre as quais uma criança, Moçambique e Tanzânia anunciaram uma união de esforços no combate aos crimes transfronteiriços. 2018 chegava assim ao fim sem uma solução à vista para os ataques que já haviam feito, pelo menos, 115 mortos. O julgamento dos já acusados de envolvimento nos ataques continua.
Foto: privat
Janeiro de 2019
O novo ano não começou da melhor forma. Sete pessoas morreram quando um grupo armado intercetou uma carrinha de caixa aberta que transportava passageiros entre Palma e Mpundanhar. Na semana seguinte, outras sete pessoas foram assassinadas a tiro no Posto Administrativo de Ulumbi. Um comerciante foi ainda decapitado em Maganja, distrito de Palma, no passado dia 20.