Em entrevista à DW África, o sociólogo Elísio Macamo critica a postura das autoridades na investigação dos ataques em Mocímboa da Praia, no norte de Moçambique.
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Ataques de desconhecidos em Mocímboa da Praia, norte de Moçambique, prosseguem sem que medidas a altura sejam tomadas.
O incidente mais recente resultou em feridos e na morte do diretor Nacional de Reconhecimento da Unidade de Intervenção Rápida da polícia, que foi morto a tiros pelos atacantes no domingo passado, dia 17 de dezembro. Há ainda relatos frequentes de confrontos armados pouco noticiados.
Para o sociólogo moçambicano Elísio Macamo, estes ataques mostram a "fragilidade do Estado moçambicano" e que as autoridades não fazem ideia do que se está a passar naquela localidade.
Em entrevista à DW África, Macamo também comentou o silencia do Governo de Moçambique em relação aos ataques. Confira a íntegra da entrevista:
DW África: Acha que o caso está a ser tratado com a devida firmeza?
Elísio Macamo (EM): Eu não diria firmeza. Procuraria saber se as autoridades dispõem de conhecimento suficiente para saberem para lidar com a situação. Até este momento, não há de facto nenhuma ideia clara sobre a natureza dessa violência. Quando isso aconteceu pela primeira vez, recentemente em outubro, as pessoas levantavam a hipótese de se tratar de extremismo islâmico – uma hipótese que vem mais tarde a ser invalidada. Há rumores de que isto tem a ver com coisas ligadas ao contrabando, pois a zona é muito propensa a isso aí. Portanto, é bom não esquecer que essa violência não começa realmente hoje. Por exemplo, já em 2014, quando houve as eleições municipais, os ânimos estavam tão levantados lá em Mocímboa da Praia que descambaram também em violência. É isso que ninguém sabe ao certo, muito menos as próprias autoridades. Portanto, não é uma questão de firmeza, neste momento; é uma questão de saber o que se está a passar. Parece que ninguém sabe.
DW África: A ser verdade, seria um pouco caricato, não é? Porque esses ataques já estão a acontecer há algum tempo, e põem em causa as instituições do Estado, porque são ataques repetidos...
EM: Isso é verdade. No fundo, o que isso mostra é a fragilidade do Estado moçambicano, que é uma fragilidade típica de todos os Estados que se encontram na situação do nosso país. É um Estado que ainda está em processo de formação, de consolidação, e que, portanto, é muito vulnerável a este tipo de problemas. Aliás, não devemos esquecer que neste momento todo o país está refém de um indivíduo, o líder do partido da oposição [RENAMO]. E isso é mais uma manifestação ou, se calhar, a maior ilustração da fragilidade do Estado moçambicano.
DW África: Recentemente, a Polícia da República convidou os atacantes a entregarem-se. Dada a gravidade da situação, acha que este tipo de apelos são válidos?
EM: Achei isto muito caricato, devo dizer. E achei que aquilo fosse uma manifestação da perplexidade da própria polícia. Provavelmente a polícia tem a ideia de que se trata de alguns indivíduos, e que com alguns gestos estes indivíduos vão ser trazidos à razão. A forma como os ataques mais recentes – nesses em que foi morto o chefe dessa Unidade de Reconhecimento – dá para perceber que foi uma operação muito bem preparada. E quando a vítima dessa operação é o chefe da Unidade de Reconhecimento da Polícia de Moçambique, dá para imaginar a gravidade da situação e a natureza formidável do indivíduo que se tem pela frente. Portanto, acho que o comandante geral também não deve estar muito bem informado sobre a situação. Aquele apelo dele ou foi para acalmar um bocado a população, porque ele falava num comício com a população; ou então tem mesmo um sinal de que ele não tem consciência do problema que tem em mãos, e isso é grave.
DW África: O Governo fala muito pouco sobre estes ataques. Será esta atitude uma estratégia, ou não está a ser dada a real importância à situação em Mocímboa da Praia?
EM: É um pouco complicado. Por um lado, o Governo moçambicano não tem o hábito de informar as pessoas sobre o que se passa. Isso é uma coisa que já de há muito tempo. Esse respeito pelas pessoas que eles representam não existe no nosso país. É por isso que o nosso chefe de Estado pode se permitir fazer negociações com um foragido e não ver nenhuma necessidade de falar com as pessoas no país para dizer o que ele, de facto, está a negociar com esse indivíduo. Por outro lado, há de facto esta questão de um Estado que está ainda em formação, infelizmente. Então, com toda essa vulnerabilidade que o Estado tem, as autoridades não percebem o que se está a passar e não sabem o que informar. O que eles vão dizer ao público? Sujeita-se um pouco ao ridículo ao que se sujeitou o comandante geral da polícia, ao fazer uma demonstração de força que ele, aparentemente, não tem.
Moçambique: Guerra civil com pausas de paz
A paz nunca foi uma certeza em Moçambique. Ela apenas tem intercalado confrontos militares desde a independência. Acordos de paz mal concebidos parecem estar na origem dos conflitos. Mas há novos bons sinais à vista.
Foto: Presidencia da Republica de Mocambique
O começo da guerra civil
A guerra entre o Governo da FRELIMO e a RENAMO começou em 1977, isso cerca de dois anos após a proclamação da independência do país. A RENAMO contestava a governação da FRELIMo e queria democracia. Este movimento tinha o apoio da ex-Rodésia e da África do Sul, dois vizinhos de Moçambique. A guerra matou milhões de moçambicanos e quase paralisou a economia do país.
Acabar com a guerra era o obetivo deste acordo, alcançado em 1984. Foi assinado entre os antigos Presidentes de Moçambique e da África do Sul, Samora Machel e Peter Botha, respetivamente. Ficou acordado que Pretória deixava de apoiar a RENAMO e Maputo parava o apoio ao ANC. Este último que lutava contra o Apartheid. Mas ninguém respeitou o acordo.
Foto: Avant Verlag/Birgit Weyhe
Acordo Geral de Paz de Roma
Colocou finalmente fim a guerra em 1992. Foi patrocinado pela Comunidade Santo Egídio, instituição católica italiana. Nessa altura o país já estava devastado e tinha transitado do sistema socialista para o da economia de mercado. Afosno Dhlakama, líder da RENAMO, e Joaquim Chissano, ex-Presidene de Moçambique, assinaram um acordo que pôs fim a uma guerra de 16 anos.
Eleições: nova era de desentendimentos
Em 1994 o país dava os seus primeiros passos rumo a democracia: início do multipartidarismo e realização das primeiras eleições, patrocinadas pela ONU. O primeiro Presidente eleito do país foi Joaquim Chissano. A RENAMO contestou, mas acabou por aceitar os resultados eleitorais.
Foto: Getty Images/AFP/Gianluigi Guercia
Eleições 1999: RENAMO revolta-se
Nas segundas eleições, em 1999, Joaquim Chissano e a FRELIMO voltaram a ganhar. Mas o processo foi novamente marcado por graves irregularidades, a RENAMO diz que houve fraude e contestou com mais veemência. E no ano 2000 apoiantes da RENAMO manifestaram-se em Montepuez província de Cabo Delgado, contra os resultados. Cerca de 700 manifestantes terão sido detidos e mortos por asfixia nas celas.
Foto: Marc Dietrich-Fotolia.com
Rastilho para o barril de pólvora já arde
As sucessivas irregularidades nas eleições, a lei eleitoral desajustada e difícil integração dos ex-guerrilheiros da RENAMO no exército nacional foram os principais pontos que aumentaram a tensão com o Governo. A falta de confiança que caracteriza a relação entre as partes aumentou.
Foto: Gerald Henzinger
As armas falam novamente
Em 2013 a polícia e homens da RENAMO confrontaram-se. Era o início dos conflitos armados. Nesse ano a RENAMO recusa a aprovação da Lei Eleitoral e não participa nas autárquicas. Há um interregno no conflito para a realização de eleições gerais em 2014. A RENAMO perde e acusa a FRELIMO de fraude. O país volta a ser palco de guerra. RENAMO exige governar as seis províncias onde diz ter ganho.
Foto: Fernando Veloso
Guebuza e Dhlakama: o braço de ferro até ao fim
Em setembro de 2014 o Presidente Armando Guebuza e o líder da RENAMO chegam a acordo para por fim ao conflito armado. Abriu-se assim caminho para as eleições gerais, onde a RENAMO participou. Mas as negociações entre os dois homens nunca foram fáceis. Para começar os encontros foram poucos.
Foto: Jinty Jackson/AFP/Getty Images
Na guerra vale tudo
Em Setembro de 2015 Dhlakama sofreu dois atentados. Um deles contra a coluna em que viajava, de Manica a Nampula. Afonso Dhlakama saiu ileso, mas segundo relatos morreram várias pessoas. Mais tarde várias viaturas da comitiva do líder da RENAMO foram queimadas. Dhlakama acusou a FRELIMO pelos atentados.
Foto: DW/A. Sebastião
Cerco a casa de Afonso Dhlakama
Em outubro de 2015 a guarda pessoal do líder da RENAMO foi desarmada pelas forças governamentais durante um cerco à sua residência na cidade da Beira. O Governo pretendia um desarmamento forçado dos homens da RENAMO. O desarmamento da maior força da oposição é um dos pontos controversos nas negociações de paz.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Catueira
Diálogo de paz pouco frutífero
Infindáveis rondas marcaram as negociações de paz. E em paralelo as armas falavam nas matas, membros da RENAMO eram assassinados a média de um por mês em 2016. Observadores e mediadores, nacionais e internacionais, entraram e saíram do barulho sem conseguir muito. Houve também adiamentos de rondas e algumas pausas no processo.
Foto: Leonel Matias
Dhlakama e Nyusi: maior proximidade, bons sinais
Em agosto de 2017 o Presidente Nyusi deslocou-se à Gorongosa, bastião da RENAMO, para se encontrar com Dhlakama. Os dois líderes acordaram sobre os próximos passos no processo de paz. Esperavam um acordo de paz até ao final de 2017, mas tal não deverá acontecer. Entretanto, Dhlakama está satisfeito com o andamento das negociações. O sigilo entre os dois parece ser o segredo de um bom entendimento.