Das diversas irregularidades supostamente cometidas pelo Banco Central no caso das dívidas ocultas, economista estranha particularmente o facto do BM não ter domiciliado o dinheiro. Jurista defende investigação da PGR.
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Segundo o Centro de Integridade Pública (CIP), que segue o julgamento do caso de crimes financeiros ligado às dívidas ocultas moçambicanas nos EUA, Jean Boustani, um dos acusados em julgamento neste momento, usou o facto da contratação das dívidas da EMATUM e da ProIndicus ter sido autorizada pelo Banco de Moçambique (BM) para se defender e sustentar que foi tudo legal.
Entretanto, o Banco Central (BC) em 2016 disse à imprensa local que desconhecia as dívidas ocultas. Para o economista Muzila Nhansal, esta aparente confirmação sobre o envolvimento do BM não é nada de novo e não foge à lógica.
"O Banco Central tinha de saber que essas dívidas estavam a acontecer, caso contrário como iria registar os seus saldos? Porque tudo o que é serviço de dívida financeira com o exterior é obrigação do Banco Central controlar", explica Nhansal.
Na altura o governador do Banco Central era Ernesto Gove, que se supõe ser o indíviduo "U" no relatório da Kroll às dívidas ocultas. Ernesto Gove veio depois a ser constituído arguido em março de 2019 pela Procuradoria-Geral da República (PGR) no âmbito do caso das dívidas ocultas.
Violação de regras internas no Banco de Moçambique?
A aparente mentira de Gove pode descredibilizar o Banco Central, entende o economista, que, pelos sinais, suspeita que a "casa não estava bem arrumada" na altura. Para Muzila Nhansal o banco falhou na sua obrigação de controlar as coisas,"não correram os trâmites normais: não teve o parecer do Banco Central em relação aos valores que estavam a ser contraídos".
O economista esclarece que, para alguém "contrair um empréstimo, tem de ver qual é a sua posição e depois o que isso significa em termos de esforço financeiro futuro para o pagamento de tais dívidas, pese embora se dissesse na altura que eram empresas privadas. Mas sendo o Estado avalista de tais empréstimos, o risco para o Governo e Estado sempre existe, em caso de incumprimento. Então, o banco tem de fazer uma análise e, em função disso, dar o seu parecer."
Banco de Moçambique e dívidas ocultas: Negligência ou cumplicidade?
Porque o Banco de Moçambique não domiciliou o dinheiro?
Na lista de incumprimentos há um desvio de realce, que ajuda a fortalecer as suspeitas em relação à atuação do Banco Central. Muzila Nhansal revela que o Banco Central não domiciliou o dinheiro envolvido, questionando: "Como é que o dinheiro não entrou primeiro no Banco Central? É lá onde deve ser contabilizado esse valor e a posteriori é que devia sair para pagar o que quer que fosse."
"O que se sabe é que os dinheiros saíram dos tais bancos diretamente para os fornecedores de bens e serviços. É no mínimo estranho, é imprudente. O Banco tem de saber primeiro de onde vem, quanto é, para quem vai, porque é que vai, qual é a fonte e todo um sem fim de questões que se colocam antes do dinheiro estar disponível. Então, as coisas falharam. O BC agiu como cúmplice, sendo negligente ou então não [tendo] agido", entende o economista.
A autorização do Banco Central foi uma das exigências do Banco Credit Suisse para conceder o empréstimo. As autorizações terão sido assinadas em 2013 pela administradora do Banco de Moçambique, Silvina de Abreu, e dirigidas a Eugénio Matlaba, da ProIndicus e Henrique Gamito, administrador delegado da EMATUM.
Investigação da PGR?
A comprovar-se que houve realmente um incumprimento das regras internas por parte do BC é possível responsabilizar a instituição ou as pessoas que ordenaram as transações?
"Penso que o mais importante neste momento é que a PGR recolha todas as informações deste julgamento e que possa não necessariamente usá-las diretamente no processo, mas iniciar uma investigação, seja ela nova, se não tiver esses elementos anteriores, ou então uma diligência complementar, para saber, de facto, se esses elementos são verídicos", responde o jurista Elísio de Sousa.
Por conseguinte, "a serem verídicos, se eles, de facto, foram emitidos por gente que tem competência para tal, [...] a partir daí apurar as devidas responsabilidades, se houver", finaliza o jurista.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)