Em entrevista à DW África, Dom Luiz Fernando Lisboa descreve como desolador o ambiente vivido nas comunidades alvo de insurgência no norte de Moçambique e cobra uma resposta do Governo e das forças de segurança.
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Em entrevista à DW África, o Dom Luiz Fernando Lisboa, criticou o aparente silêncio das autoridades e do mundo face ao clima de insegurança que se vive em alguns distritos da província moçambicana de Cabo Delgado. Numa carta divulgada na sexta-feira passada (19.07), o padre brasileiro diz não entender por que não há igual preocupação com as vítimas dos ataques armados, tal como acontece com as dos ciclones Idai e Kenneth.
Na missiva intitulada "Carta Aberta ao Povo de Cabo Delgado", Dom Luiz Fernando Lisboa usou a sua voz para expressar o sofrimento a que estão sujeitos os residentes dos distritos do norte e centro de Cabo Delgado. Desde 2017, a população tem sido vítima de ataques protagonizados por indivíduos cuja identidade ainda não é do domínio público.
Bispo de Pemba: "O povo está a sofrer com ataques armados"
O bispo da Diocese de Pemba assegura que a intenção da carta não é atacar a quem quer que seja, mas alertar sobre uma triste realidade que muitos veem e ouvem, mas ignoram. "Eu tenho visto o povo a sofrer, a andar sem rumo. Alguns perderem a esperança, estão desanimados. Então, muitas vezes, nós precisamos ser a voz daqueles que não têm voz. É um momento forte de reflexão. Como eu disse na carta, é um momento, se necessário, de mudarmos de estratégias, de repensarmos, todos, as nossas ações – o Governo, as forças de segurança, as religiões e todos os grupos envolvidos", afirma.
Na carta, o bispo lançou um apelo para que as pessoas não se resignem à violência e não cansem de procurar a justiça e a paz. "Isso seria como entregar os nossos irmãos do norte nas mãos dos malfeitores", lê-se na missiva.
O bispo brasileiro descreve o ambiente vivido nas comunidades alvo da insurgência como desolador. Pessoas estão a viver em casas de parentes nas vilas, devido à insegurança nas aldeias de origem, o que resulta em problemas, como a fome e o abandono às aulas.
Dom Luiz Fernando Lisboa questiona por que diante de tanto sofrimento e do aparente descontrolo da situação da segurança as autoridades criam um clima de secretismo e não se deixam ajudar nas investigações.
"Se olharmos todas as notícias que nós temos no mundo, inclusive a cobertura das guerras, estão lá os jornalistas. É claro que é uma profissão muito difícil, perigosa e que exige muita coragem e preparação, mas essa é a tarefa do jornalista: trazer as notícias, descobrir algumas coisas que estão escondidas. Então, penso que uma abertura poderia com certeza ajudar na identificação completa das motivações e talvez até quem são os mandantes dos ataques", disse.
Visita papal
A carta aberta foi escrita às vésperas da visita do Papa Francisco a Moçambique, a decorrer entre os dias 4 e 6 de setembro próximo. O cronograma da visita papal não inclui uma escala à província de Cabo Delgado.
"Não foi possível encaixar uma visita aqui em Cabo Delgado ou outra província. Mas o Papa tem uma mensagem muito geral. Ele sabe da situação de Cabo Delgado, da situação dos ataques e dos ciclones e, com certeza, ele vai dizer uma palavra de esperança a todo o povo moçambicano", sublinhou Dom Luiz Fernando Lisboa.
O bispo disse acreditar que, apesar das dificuldades que a província enfrenta, a quantidade de recursos naturais de que Cabo Delgado é detentora e o espírito trabalhador que caracteriza o seu povo são condimentos perfeitos para garantir o progresso da província e de Moçambique como um todo. Mas para tal acontecer é imperioso investir-se na formação da juventude.
"Temos jovens deambulando sem rumos, sem saber o que fazer. Então, acredito que se investirmos mais na educação da nossa juventude, com mais escolas que ofereçam ensino médio, com escolas técnicas e profissionalizantes que preparem a mão-de-obra que essas empresas necessitam, isso tudo pode nos trazer progressos", concluiu.
Cabo Delgado: Datas marcantes dos ataques armados
Começaram em outubro de 2017 em Mocímboa da Praia e já se alastraram a outros três distritos moçambicanos. Os ataques armados na província de Cabo Delgado, que somam já mais de 130 mortos, ainda não têm solução à vista.
Foto: DW/G. Sousa
Outubro de 2017
Os primeiros ataques de grupos armados desconhecidos na província de Cabo Delgado aconteceram no dia 5 de outubro de 2017 e tiveram como alvo três postos da polícia na vila de Mocímboa da Praia. Cinco pessoas morreram. Cerca de um mês depois, a 17 de novembro, as autoridades dão ordem de encerramento a algumas mesquitas por se suspeitar terem sido frequentadas por membros do grupo armado.
Foto: Privat
Dezembro de 2017
Surgem novos relatos de ataques nas aldeias de Mitumbate e Makulo, em Mocímboa da Praia. Na primeira semana de dezembro de 2017, terão sido assassinadas duas pessoas. Vários suspeitos foram identificados, tendo os moradores dado conta que os atacantes deram sinais de afiliação muçulmana. Por sua vez, a polícia desmentiu o envolvimento do grupo terrorista Al-Shabaab nestes ataques.
Foto: DW/G. Sousa
Janeiro a maio de 2018
Apesar de ter começado calmo, 2018 revelar-se-ia um ano de terror na província de Cabo Delgado com os ataques a alastrarem-se a mais distritos. Dada a gravidade da situação, a Assembleia da República aprovou, a 2 de maio, a Lei de Combate ao Terrorismo. Mas, no final do mês, dia 27, novos ataques foram realizados junto a Olumbi, distrito de Palma. Dez pessoas morreram, algumas decapitadas.
Foto: Privat
2 de junho de 2018
Dias mais tarde, a televisão STV dava conta que as forças de segurança moçambicanas haviam abatido, nas matas de Cabo Delgado, oito suspeitos de participação nos ataques. Foram ainda apreendidas catanas e uma metralhadora AK-47, além de comida e um passaporte tanzaniano. Por esta altura, já milhares de pessoas haviam abandonado as suas casas, temendo a repetição dos episódios de terror.
Foto: Borges Nhamire
4 de junho de 2018
Ainda se "festejava" os avanços na investigação das autoridades, e consequente abate dos suspeitos quando, a 4 e 7 de junho, se registaram novos incêndios nas aldeias de Naunde e Namaluco. Sete pessoas morreram e quatro ficaram feridas. Foram ainda destruídas 164 casas e quatro viaturas. O mesmo cenário voltou a repetir-se a 22 de junho: um novo ataque na aldeia de Maganja matou cinco pessoas.
Foto: Privat
29 de junho de 2018
Fortemente criticado por não se ter ainda pronunciado acerca dos ataques, o Presidente moçambicano Filipe Nyusi resolve fazê-lo, em Palma, perante um mar de gente. Oito meses e 33 mortos [25 vítimas dos ataques e oito supostos atacantes] depois... Em Cabo Delgado, Nyusi prometeu proteção aos cidadãos e convidou os atacantes a dialogar consigo, de forma a resolver as suas "insatisfações".
Foto: privat
Agosto de 2018
Depois de, em julho, um novo ataque à aldeia de Macanca - Nhica do Rovuma, em Palma, ter feito mais quatro mortos, Filipe Nyusi desafiou, a 16 de agosto, os oficiais promovidos no exército, por indicação da RENAMO, a usarem a sua experiência no combate contra estes grupos armados que, mais tarde, a 24 do mesmo mês, tirariam a vida a mais duas pessoas, na aldeia de Cobre, distrito de Macomia.
Foto: Jinty Jackson/AFP/Getty Images
Setembro de 2018
Setembro de 2018 voltava a ser um mês negro no norte de Moçambique. Ataques nas aldeias de Mocímboa da Praia, Ntoni e Ilala, em Macomia, deixaram pelo menos 15 mortos e dezenas de casas destruídas. No final do mês, o ministro da Defesa, Atanásio Mtumuke, afirmou que os homens armados responsáveis pelos ataques seriam "jovens expulsos de casa pelos pais".
Foto: Privat
Outubro de 2018
Um ano após o início dos ataques em Cabo Delgado, a polícia informou que os mais de 40 ataques ocorridos, haviam feito 90 mortos, 67 feridos e destruído milhares de casas. Foi também por esta altura que Filipe Nyusi anunciou a detenção de um cidadão estrangeiro suspeito de recrutar jovens para atacar as aldeias. No final do mês, começaram a ser julgados 180 suspeitos de envolvimento nos ataques.
Foto: privat
Novembro de 2018
Novos relatos de mortes macabras surgem na imprensa. Seis pessoas foram encontradas mortas com sinais de agressão com catana na aldeia de Pundanhar, em Palma. Dias depois, o cenário repetiu-se nas aldeias de Chicuaia Velha, Lukwamba e Litingina, distrito de Nangade. Balanço: 11 mortos. Em Pemba, o embaixador da União Europeia oferecia ajuda ao país.
Foto: Privat
6 de dezembro de 2018
A população do distrito de Nangade terá feito justiça pelas próprias mãos e morto três homens envolvidos nos ataques. Na altura, à DW, David Machimbuko, administrador do distrito de Palma, deu conta que "depois de um ataque, a população insurgiu-se e acabou por atingir alguns deles". Entretanto, o Ministério Público juntou mais nomes à lista dos arguidos neste caso. Entre eles está Andre Hanekom.
Foto: DW/N. Issufo
16 de dezembro de 2018
A 16 de dezembro, e após mais um ataque armado no distrito de Palma, que matou seis pessoas, entre as quais uma criança, Moçambique e Tanzânia anunciaram uma união de esforços no combate aos crimes transfronteiriços. 2018 chegava assim ao fim sem uma solução à vista para os ataques que já haviam feito, pelo menos, 115 mortos. O julgamento dos já acusados de envolvimento nos ataques continua.
Foto: privat
Janeiro de 2019
O novo ano não começou da melhor forma. Sete pessoas morreram quando um grupo armado intercetou uma carrinha de caixa aberta que transportava passageiros entre Palma e Mpundanhar. Na semana seguinte, outras sete pessoas foram assassinadas a tiro no Posto Administrativo de Ulumbi. Um comerciante foi ainda decapitado em Maganja, distrito de Palma, no passado dia 20.