Bissau e Timor-Leste em rota de colisão
30 de agosto de 2024Os laços de irmandade entre Timor-Leste e a Guiné-Bissau amarrotaram-se esta semana, quando o líder da Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN), Mari Alkatiri, afirmou entre outras coisas, que Bissau não reunia condições para acolher a cimeira da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), prevista para 2025, no contexto dos desvios democráticos.
Bissau reagiu, com acidez, ao afirmar que Alkatiri e o primeiro-ministro timorense, Xanana Gusmão, não estariam com as suas faculdades mentais em dia.
"De facto é lamentável. Mas não podemos responder-lhes, são nossos irmãos. A Guiné-Bissau não pediu para presidir à CPLP... E a Guiné-Bissau de Umaro Sissoco Embaló, não é por arrogância, mas quando nos sentamos na CPLP, não se olha para Timor-Leste, olha-se para Umaro Sissoco Embaló e a Guiné-Bissau", disse o chefe de Estado guineense.
"Tentativa de deturpação"
Agnelo Regalla, histórico ex-militante do PAIGC, partido libertador da Guiné-Bissau, entende que a posição de Sissoco se trata de uma tentativa de deturpação das palavras dos irmãos timorenses, que apenas criticaram a situação do país. Facto curioso é que a CPLP não veio a público condenar os desmandos na Guiné-Bissau e muito menos apelar à reposição da ordem constitucional. A que se deve esse silêncio dos outros "irmãos"?
"O problema é a tal noção sobre a ingerência nos assuntos internos de países independentes. Acho que Angola, Moçambique e outros países estão a respeitar-se nos termos diplomáticos para não serem acusados de ingerência. Agora, há organizações como a CPLP que deveriam posicionar-se e assumir uma postura para dizer que este país não reúne condições, na medida em que viola os estatutos da própria organização, violando os direitos humanos e tudo aquilo que está previsto nos estatutos da CPLP", considerou o guineense em entrevista à DW África.
Na CPLP, é prática gerir conflitos entre quatro paredes, mas em público reinam os sorrisos e palavras de apreço. Este incidente diplomático é uma das maiores manchas na história da CPLP. A organização há muito que é criticada por ser inexpressiva em momentos conturbados.
"Não podemos esquecer-nos que estas organizações foram criadas numa perspetiva de relação institucional, nunca vinculam os seus próprios cidadãos. São organizações de Governos, porque têm muito que ver com quem está à frente dos Governos na altura em que estes acontecimentos se dão", comentou o historiador angolano Manuel dos Santos.
Mas será que o silêncio perante esta lavagem de roupa suja pública deve-se apenas a uma fuga às acusações de ingerência? O investigador moçambicano Calton Cadeado aponta um outro possível fator.
"É cultura dentro da instituição não criticar em público. E não conheço outros casos anteriores que tenham chegado a este nível. A única coisa que posso dizer é que este Presidente [Sissoco Embaló] é tão controverso tanto dentro como fora do país", opinou.
O primeiro-ministro de Timor, Xanana Gusmão, também lamentou recentemente que a Guiné-Bissau não seja mais a referência que foi nos tempos da luta pela libertação colonial. O histórico guineense Regalla entende que foi uma achega muito direta ao regime de Sissoco, que também atirou à cara dos timorenses a ajuda concedida durante a sua luta pela auto-determinação. Regalla condena a "baixaria", afirmando que não se pode estender a mão e depois cobrar.
"Se é para cobrar, Timor-Leste apoiou a Guiné-Bissau depois da sua independência, conseguiu uma gestão para dar apoio nas eleições. E ainda muito recentemente, Timor-Leste concedeu um apoio de cerca de 700 mil euros cujo destino ninguém sabe”, advertiu.
Sem postura
Para o analista Calton Cadeado não há dúvidas de que falta ao Presidente guineense postura de estadista.
"Infelizmente Embaló mostrou que não é um político, é um militar emprestado à política. E no meio militar conhecemos o rigor usado para impor a disciplina, às vezes com base neste tipo de atitude e de linguagem de impor medo", considerou.
"Ele transporta isso para o lado político, inclusive no espaço público. O que é politicamente incorreto. Falta no Embaló uma atitude de estadista, uma atitude de diplomacia. Sabemos que um estadista, em qualquer parte do mundo, é o diplomata mor", frisou.
Na Guiné-Bissau, Sissoco é visto como um mentiroso compulsivo. Nesta tensão com Timor-Leste, disse por exemplo, que recebeu palavras de apreço de dirigentes da CPLP, facto que nunca foi avançado pelas partes citadas.
"Obviamente está com muitos problemas. Não sei se é a memória dele que construiu tudo isso, mas de facto Embaló tem faltado com a verdade para com os guineenses de forma sistemática. Ele tornou-se num mentiroso compulsivo. Tem uma propensão para mentir descaradamente e esse facto com Timor-Leste mostra que ele não tem perfil para ser chefe de Estado", concluiu o historiador angolano Manuel dos Santos.