Bodiva: Salários chorudos em meio a miséria?
8 de agosto de 2025
Numa altura em que a fome sai às ruas, como diz a ativista angolana Laura Macedo, com protestos e tumultos contra o custo de vida no país, a notícia de um aumento exorbitante de salários e de atribuição de gordos prémios na Bolsa de Dívida e Valores de Angola (Bodiva), incluindo da responsável, a filha do Presidente da República, caiu como uma bomba.
O empresário Nuno Baio reconhece que "essa informação vem, de facto, num momento que não é bom", mas garante: "Nós, angolanos, estamos a tentar fazer uma gestão adequada ao momento. Como sociedade estamos a viver um momento difícil, mas nós já superámos outros momentos difíceis e vamos superar este."
Baio refere, ainda assim, que "uma informação como esta vem incendiar ainda mais as coisas que já estavam um bocadinho quentes".
Os números da denúncia
De acordo com o Valor Económico, a presidente da comissão executiva da Bodiva, Cristina Lourenço, recebe 181,7 milhões de kwanzas mensais (mais de 170 mil euros). O jornal diz ainda que Lourenço aumentou o salário de todo o conselho de administração em 121% e que os custos com o pessoal ascendem a 1,464 mil milhões de kwanzas, valor superior aos 965,286 milhões arrecadados em três meses.
Cada membro da equipa liderada por Cristina Lourenço teria recebido um adicional de 18,965 milhões (cerca de 17.800 euros), comparativamente aos primeiros três meses de 2025.
Os dados, referentes ao segundo trimestre de 2025, foram extraídos da própria página da Bodiva, explica o editor executivo do Valor Económico, César Silveira.
"Quando fizemos a matéria, fizemos como jornal de economia para um exercício que temos feito constantemente. Não é a primeira vez que vamos aos relatórios da Bodiva. Fizemos recentemente um trabalho sobre a assembleia, só que infelizmente não houve esse [impacto] que está a ter agora, porque coincidentemente quem é CEO é a filha do Presidente", afirma.
A resposta da Bodiva
A Bodiva, por sua vez, em jeito de resposta, refuta os números do Valor Económico e apresenta outros. Sublinha, por exemplo, o acréscimo dos custos com pessoal de 17,1%, que estaria relacionado com um ajuste nas remunerações dos órgãos sociais aprovado pelos acionistas e prémios de desempenho.
Em nota de imprensa publicada no dia 6 de agosto, a instituição diz-se comprometida com a transparência e refere que as Demonstrações Financeiras (DFs) estão em processo de auditoria, com o relatório final a ser publicado antes de 31 de agosto.
Divergências à parte, os salários da Bodiva estão acima da média do que se pratica em Angola, onde 31,1% da população vive abaixo da linha de pobreza, segundo dados deste ano da ONU. Mesmo assim, o empresário Nuno Baio considera-os "bastante aceitáveis", considerando, por exemplo, que a Bodiva dá ainda os primeiros passos e necessita de assegurar mão de obra bem qualificada.
"Depende do que é a média que se pratica e o tipo de instituição. A Bodiva é uma Bolsa de Valores, precisa de estar alinhada com a reputação da própria instituição, precisa de pagar por talentos, por capital intelectual de algum valor, obviamente", argumenta.
Cristina Lourenço e Isabel dos Santos são iguais?
Mas deste caso nasce uma nova celeuma entre os contestatários: Uma comparação entre os alegados excessos apontados a filha do atual Presidente da República e os atribuídos a filha do antigo chefe de Estado, José Eduardo dos Santos.
"Uma das razões que me leva a entender a comparação das pessoas é o caso da Isabel dos Santos, ou seja, esses crimes de que é acusada pela sua passagem pela Sonangol, pelo facto de que o seu conselho de administração ter decidido aumentar os salários numa média de 45% na altura. É um dos crimes que pesa sobre Isabel dos Santos. Agora temos o caso da Bodiva, o aumento só dos órgãos sociais é de 121%, para outro pessoal de 56%", compara Silveira.
Há, contudo, diferenças. Cristina Lourenço é uma tecnocrata que constuiu a sua carreira desde cedo, a partir das bases, no setor das finanças - mesmo antes do seu pai se tornar Presidente. O mesmo não se poderá dizer da empresária Isabel dos Santos que, segundo os críticos, teria caído de paraquedas diretamente na presidência da petrolífera nacional Sonangol.
Por isso, o empresário Nuno Baio rejeita, desde logo, quaisquer especulações sobre eventual nepotismo no caso de Cristina Lourenço: "Eu acho que são perfis completamente diferentes. A administradora da Bodiva cresceu nesse ambiente, fez carreira, passou por outras instituições do setor e acabou por ser indicada pelos acionistas para assumir, mas também já estava na casa há algum tempo. O outro caso é completamente diferente".
"Eu acho que essa comparação não é muito justa", resume.
Investigação da PGR?
Embora a Bodiva tenha sublinhado o seu compromisso com a transparência e a realização de uma auditoria, o jornalista César Silveira, que fala em dois pesos e duas medidas na Justiça, defende uma investigação da Procuradoria-Geral da República (PGR) ao caso.
"Estamos aqui perante uma oportunidade, entendo eu, da PGR mostrar que afinal tem sido injustamente acusada de perseguir Isabel dos Santos por ser Isabel dos Santos", defende.
O jornalista argumenta: "Se, naquele caso [Isabel dos Santos]se entendeu que havia um crime na decisão de aumentar o salário de forma exorbitante, aqui na Bodiva deve existir pelo menos um inquérito".
Silveira distancia-se de qualquer acusação: "Não estou a dizer que há crime, mas pelo menos é preciso dizer que se investigou e se chegou a conclusão que tudo foi feito dentro da legalidade."