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Cólera em Angola: "É expetável o aumento de casos"

João Carlos
20 de fevereiro de 2025

A cólera alastra-se em Angola, onde o saneamento básico é deficiente, e continua a ceifar vidas. O Governo responde com campanha de vacinação. Médico angolano diz à DW que não faltaram avisos ao executivo.

Um dos aspetos da cidade de Luanda
Luanda e Bengo são o epicentro da cólera, mas a doença faz-se sentir já noutras províncias como Huambo, Huíla e Cuanza SulFoto: Braima Darame

A cólera continua a matar em Angola e a propagar-se para outras províncias, além de Luanda e Bengo, em consequência do deficiente saneamento básico. De acordo com o Ministério da Saúde angolano, há registos de aumento de casos de infetados e de mortes.

Até à última quarta-feira (19.02), registaram-se mais 124 novos casos de cólera e três óbitos, totalizando 153 desde o início do surto, em janeiro passado. Os óbitos foram registados nas províncias do Bengo, Luanda e Malanje, sendo que, neste período, 98 pessoas tiveram alta e 161 estão internadas com cólera.

Até quarta-feira, desde o início do surto, foi reportado um total cumulativo de 4.359 casos, sendo 2.088 na província de Luanda, 1.678 na província do Bengo, 528 na província do Icolo e Bengo, 29 na província do Cuanza Sul, 15 na província de Malanje, sete na província do Huambo, seis na província da Huíla, cinco na província do Zaire, dois na província do Cuanza Norte e um na província do Cunene, com idades compreendidas entre os 2 e os 100 anos.

A par com este surto, Angola debate-se com outros quadros epidémicos comuns, nomeadamente face à malária, à tuberculose, à febre tifoide e ao VIH/SIDA, que continua a ser a terceira causa de morte por doenças infeciosas, segundo recorda o médico Jeremias Agostinho em entrevista à DW.

O académico, especialista em Saúde Pública, diz ser "expectável” que o número de casos de cólera aumente nas próximas semanas, estando a doença a alastrar-se para outras províncias. Mas, com a campanha de vacinação, visando abranger cerca de um milhão de pessoas, Agostinho admite que nas províncias mais afetadas possa haver uma desaceleração nos próximos dias, mas durante um curto período. O também diretor da Academia Angolana de Medicina deixa, nesta entrevista, conselhos à população que podem ajudar a conter a cólera.

"Começamos a notar uma aceleração do número de casos nas demais províncias que não são o epicentro da doença", constata médico angolano Jeremias AgostinhoFoto: Privat

DW África: A cólera continua a matar em Angola. É expetável e preocupante que o número de mortes possa aumentar significativamente nas próximas semanas ou será possível conter esta tendência?

Jeremias Agostinho (JA): O expectável é justamente que aumente nas próximas semanas, porque nesta altura nós começamos a notar uma aceleração do número de casos nas demais províncias que não são o epicentro da doença. Estamos a falar especificamente do Huambo, Huíla, Cuanza Sul, contrariamente à tendência atual que ainda é, na verdade, a província de Luanda e Icolo e Bengo serem o epicentro da doença. Mas nas demais províncias já começou a acelerar.

Como nessas três províncias, as pessoas foram vacinadas, diga-se que pode haver uma desaceleração nos próximos dias, mas durante um curto período. Enquanto isso, nas províncias onde as pessoas não foram vacinadas poderá começar a notar-se um aumento de casos. Porque, infelizmente, as condições que fazem com que o número de casos e também de morte ocorram estão presentes não só nas províncias que são o epicentro da doença, mas também nas demais províncias. E até de uma forma mais agudizada.

DW África: Há muito lixo por recolher, águas paradas, falta de higiene sobretudo junto aos bairros mais pobres. Concorda que um dos principais problemas com este surto de cólera tem a ver com a falta de saneamento básico?

JA: Sim, é justamente a falta de saneamento básico que está na origem deste surto. Não se conseguiu confirmar que o primeiro caso da doença tenha sido importado. Provavelmente ele é autóctone e surge naquela zona em função do deficiente de saneamento básico.

Hoje, a nível de Angola, pelo menos 3 a 4 pessoas em cada 10 não têm um saneamento básico em condições, principalmente no que diz respeito ao tratamento dos dejetos humanos, que faz com que as pessoas, muitas vezes, tenham mais tendência à defecação ao ar livre do que usarem latrinas ou quartos de banho. E isto acontece justamente nas zonas onde os casos de cólera estão a acelerar, como, por exemplo, na província do Bengo, na zona na Barra do Dande, em Luanda, mesmo na zona do bairro do Paraíso, no bairro das Catanas, da Chapada, ali no Hoji Ya Henda, no Quicolo. São zonas onde o saneamento básico é muito deficiente.

Em Luanda, bairros como Paraíso, Catanas, Chapada ou no Hoji Ya Henda, no Quicolo, são zonas onde o saneamento básico é muito deficienteFoto: Adolfo Guerra/DW

Um aglomerado de pessoas vive em espaço territorial bastante pequeno. Não têm acesso à água potável. O sistema de drenagem das águas das chuvas e das águas residuais domésticas é bastante deficiente. Às vezes, depois de um período de chuvas, elas acabam por ficar cerca de um ou dois meses com a água parada. E isto tudo facilita o surto de doenças.

DW África: Mas isto é por incapacidade de resposta por parte das autoridades?

JA: O investimento em saneamento básico tem sido muito deficiente. Em 2024, houve uma reunião conjunta entre  UNICEF,  Ministério das Finanças e outros parceiros, em que se discutiu o investimento no saneamento básico. E durante aquela reunião, os dados que foram apresentados foram que o Estado angolano não tem estado a dedicar cerca de 1,7% do orçamento a medidas ligadas ao saneamento, higiene e acesso à água potável. É um investimento muito reduzido.

Em termos numerários esse investimento aumentou nos últimos anos, mas por causa da inflação quase que não saiu do mesmo valor real. Esse pouco investimento faz com que a situação continue. Basta olharmos para, por exemplo, o Aterro Sanitário dos Mulenvos, que é o principal da província de Luanda, que de aterro sanitário quase não tem absolutamente nada. Há alí lixo com alimentos perecíveis fora do prazo de validade, assim como medicamentos que são depositados naquela zona. A população fica à espera desse lixo para recolher alguma coisa para poder comer.

Na verdade, este surto de cólera não foi uma surpresa para o Governo, porque, em finais de 2023, os centros de saúde começaram a reportar um aumento muito grande de casos de doenças diarreicas não ligadas à cólera: febre tifoide, DDA. E naquela altura já se sentia que a qualquer momento teríamos um surto de cólera.

Por isso é que o treinamento dos profissionais de saúde sobre medidas de controlo e tratamento da cólera, dos médicos e enfermeiros, começou em princípio de 2024. O próprio plano de contingência foi traçado já em princípios de 2024, a contarmos na altura que a qualquer momento teríamos um surto de cólera.

DW África: A campanha de vacinação lançada pelo Governo abrange cerca de um milhão de pessoas. A vacina, na sua opinião, é a resposta mais adequada para conter este surto, com mais incidência nas províncias de Luanda e do Bengo?

JA: É a medida mais adequada nesse momento para curto prazo quando ter o surto. Ou seja, diminuir o aumento do número de casos e consequentes mortes. Estamos a verificar muitas mortes diárias, entre 5 a 6 mortes em média por dia. É um número elevado. A vacina corta rápido, mas não resolve o problema.

No entanto, a base do problema vai continuar, que é o saneamento básico deficiente, mas pelo menos vai reduzir a cadeia de transmissão. Mas vacinas têm que ser em maior quantidade. O número que se teve de vacinas é muito reduzido, porque nessa altura a população em risco já começa a atingir aproximadamente 15 a 20 milhões de habitantes. E nós só vacinamos praticamente 10% dessa população com 1 milhão de doses.

DW África: Até onde vai a capacidade do Governo angolano para controlar a doença? Será necessário recorrer à ajuda externa, por exemplo no que toca à obtenção de vacinas para todo o país? Ou Angola tem capacidade interna para responder ao desafio?

JA: Nós não produzimos nem temos reservas de vacinas. As vacinas estão a ser adquiridas numa parceria com a OMS [Organização Mundial da Saúde] e outros parceiros que vão financiando. Mas claramente o Estado angolano tem nesta altura que desdobrar-se para conseguir outras formas de aquisição de vacinas, principalmente nas grandes indústrias farmacêuticas que produzem e tenham vacinas de stock para dar cobertura à campanha. Porque a OMS, nesta altura, também está a ajudar um conjunto de países africanos e da Ásia que têm surtos de cólera e não tem quantidade suficiente de vacina para todos.

A OMS está a ajudar vários países em África e na Ásia com vacinas para conter o surto da cóleraFoto: picture-alliance/dpa/J. de Raeymaeker

Então, temos que, num plano B – e o Estado Angolano está a fazer isso –, adquirir noutras fontes uma maior quantidade de vacinas.

DW África: O que as autoridades devem fazer mais além do saneamento básico? Há um plano sustentável para o controlo da doença? Que conselhos deixa às autoridades e aos cidadãos angolanos?

JA: Bem, nesta altura, deve reforçar as medidas que já estão a ser tomadas, garantindo água potável às populações mais afetadas, meios para tratamento da água, principalmente o hipoclorito de sódio, e sensibilizando as populações para optarem sempre que possível por medidas de prevenção da doença, acorrendo logo nos primeiros sinais às unidades de saúde. E é isto que também reforçamos junto às populações.

É extremamente difícil porque, infelizmente, as pessoas não têm água em casa e adquirem alimentos em sítios impróprios. Mas, sempre que possível, devem cozer devidamente os alimentos, tratar a água que se vai usar dentro de casa para qualquer efeito, para limpeza interna, para lavagem do organismo, higiene própria do indivíduo, higiene do meio e para beber. Toda a água tem de ser tratada e prestar uma atenção especial às crianças. Assim, estarão a contribuir para reduzir o risco de morte.

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