Parte das armas são frequentemente tomadas do frágil Exército moçambicano, e portanto, financiadas involuntariamente pelo Estado. Quanto ao resto, a que circuito obedecem? Especialista em armas tenta explicar.
(Fotografia de arquivo, ataque na província de Cabo Delgado em agosto de 2018)Foto: DW/A. Chissale
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Em Cabo Delgado, sem resistência à altura, os insurgentes têm-se apoderado frequentemente de armas, fardamento e outros equipamentos militares das Forças de Defesa e Segurança (FDS) e da Polícia da República de Moçambique (PRM).
Mas, embora a insurgência seja assim alimentada pelos fundos do Estado moçambicano, através dos impostos do contribuinte vítima dos próprios insurgentes, parte do seu arsenal tem outras origens - afinal, terão precisado de outras armas para começar esses ataques.
Mentira da PRM
Esse material já foi capturado pelas autoridades moçambicanas algumas vezes - poucas - pelo menos pelo que foi dado a conhecer publicamente. Por exemplo, em novembro de 2017, no início das incursões armadas à província nortenha, a PRM informou, na sua habitual conferência de imprensa semanal, que apreendeu quatro armas de fogo e 100 munições.
No entanto, quando questionado na última semana pela DW sobre as caraterísticas dessas armas, o porta-voz do comando-geral da PRM, Orlando Mudumane, respondeu: "Não tenho nenhuma informação sobre as caraterísticas das armas dos malfeitores."
Uma mentira grosseira da PRM, se considerarmos os informes que a corporação fazia sobre as armas que inicialmente conseguia capturar. As notícias estão aí como prova. Mas, como os insurgentes partilham regularmente vídeos em que aparecem altamente artilhados, é possível saber que tipo de equipamento usam, para além do que é tirado às FDS.
Cabo Delgado: Datas marcantes dos ataques armados
Começaram em outubro de 2017 em Mocímboa da Praia e já se alastraram a outros três distritos moçambicanos. Os ataques armados na província de Cabo Delgado, que somam já mais de 130 mortos, ainda não têm solução à vista.
Foto: DW/G. Sousa
Outubro de 2017
Os primeiros ataques de grupos armados desconhecidos na província de Cabo Delgado aconteceram no dia 5 de outubro de 2017 e tiveram como alvo três postos da polícia na vila de Mocímboa da Praia. Cinco pessoas morreram. Cerca de um mês depois, a 17 de novembro, as autoridades dão ordem de encerramento a algumas mesquitas por se suspeitar terem sido frequentadas por membros do grupo armado.
Foto: Privat
Dezembro de 2017
Surgem novos relatos de ataques nas aldeias de Mitumbate e Makulo, em Mocímboa da Praia. Na primeira semana de dezembro de 2017, terão sido assassinadas duas pessoas. Vários suspeitos foram identificados, tendo os moradores dado conta que os atacantes deram sinais de afiliação muçulmana. Por sua vez, a polícia desmentiu o envolvimento do grupo terrorista Al-Shabaab nestes ataques.
Foto: DW/G. Sousa
Janeiro a maio de 2018
Apesar de ter começado calmo, 2018 revelar-se-ia um ano de terror na província de Cabo Delgado com os ataques a alastrarem-se a mais distritos. Dada a gravidade da situação, a Assembleia da República aprovou, a 2 de maio, a Lei de Combate ao Terrorismo. Mas, no final do mês, dia 27, novos ataques foram realizados junto a Olumbi, distrito de Palma. Dez pessoas morreram, algumas decapitadas.
Foto: Privat
2 de junho de 2018
Dias mais tarde, a televisão STV dava conta que as forças de segurança moçambicanas haviam abatido, nas matas de Cabo Delgado, oito suspeitos de participação nos ataques. Foram ainda apreendidas catanas e uma metralhadora AK-47, além de comida e um passaporte tanzaniano. Por esta altura, já milhares de pessoas haviam abandonado as suas casas, temendo a repetição dos episódios de terror.
Foto: Borges Nhamire
4 de junho de 2018
Ainda se "festejava" os avanços na investigação das autoridades, e consequente abate dos suspeitos quando, a 4 e 7 de junho, se registaram novos incêndios nas aldeias de Naunde e Namaluco. Sete pessoas morreram e quatro ficaram feridas. Foram ainda destruídas 164 casas e quatro viaturas. O mesmo cenário voltou a repetir-se a 22 de junho: um novo ataque na aldeia de Maganja matou cinco pessoas.
Foto: Privat
29 de junho de 2018
Fortemente criticado por não se ter ainda pronunciado acerca dos ataques, o Presidente moçambicano Filipe Nyusi resolve fazê-lo, em Palma, perante um mar de gente. Oito meses e 33 mortos [25 vítimas dos ataques e oito supostos atacantes] depois... Em Cabo Delgado, Nyusi prometeu proteção aos cidadãos e convidou os atacantes a dialogar consigo, de forma a resolver as suas "insatisfações".
Foto: privat
Agosto de 2018
Depois de, em julho, um novo ataque à aldeia de Macanca - Nhica do Rovuma, em Palma, ter feito mais quatro mortos, Filipe Nyusi desafiou, a 16 de agosto, os oficiais promovidos no exército, por indicação da RENAMO, a usarem a sua experiência no combate contra estes grupos armados que, mais tarde, a 24 do mesmo mês, tirariam a vida a mais duas pessoas, na aldeia de Cobre, distrito de Macomia.
Foto: Jinty Jackson/AFP/Getty Images
Setembro de 2018
Setembro de 2018 voltava a ser um mês negro no norte de Moçambique. Ataques nas aldeias de Mocímboa da Praia, Ntoni e Ilala, em Macomia, deixaram pelo menos 15 mortos e dezenas de casas destruídas. No final do mês, o ministro da Defesa, Atanásio Mtumuke, afirmou que os homens armados responsáveis pelos ataques seriam "jovens expulsos de casa pelos pais".
Foto: Privat
Outubro de 2018
Um ano após o início dos ataques em Cabo Delgado, a polícia informou que os mais de 40 ataques ocorridos, haviam feito 90 mortos, 67 feridos e destruído milhares de casas. Foi também por esta altura que Filipe Nyusi anunciou a detenção de um cidadão estrangeiro suspeito de recrutar jovens para atacar as aldeias. No final do mês, começaram a ser julgados 180 suspeitos de envolvimento nos ataques.
Foto: privat
Novembro de 2018
Novos relatos de mortes macabras surgem na imprensa. Seis pessoas foram encontradas mortas com sinais de agressão com catana na aldeia de Pundanhar, em Palma. Dias depois, o cenário repetiu-se nas aldeias de Chicuaia Velha, Lukwamba e Litingina, distrito de Nangade. Balanço: 11 mortos. Em Pemba, o embaixador da União Europeia oferecia ajuda ao país.
Foto: Privat
6 de dezembro de 2018
A população do distrito de Nangade terá feito justiça pelas próprias mãos e morto três homens envolvidos nos ataques. Na altura, à DW, David Machimbuko, administrador do distrito de Palma, deu conta que "depois de um ataque, a população insurgiu-se e acabou por atingir alguns deles". Entretanto, o Ministério Público juntou mais nomes à lista dos arguidos neste caso. Entre eles está Andre Hanekom.
Foto: DW/N. Issufo
16 de dezembro de 2018
A 16 de dezembro, e após mais um ataque armado no distrito de Palma, que matou seis pessoas, entre as quais uma criança, Moçambique e Tanzânia anunciaram uma união de esforços no combate aos crimes transfronteiriços. 2018 chegava assim ao fim sem uma solução à vista para os ataques que já haviam feito, pelo menos, 115 mortos. O julgamento dos já acusados de envolvimento nos ataques continua.
Foto: privat
Janeiro de 2019
O novo ano não começou da melhor forma. Sete pessoas morreram quando um grupo armado intercetou uma carrinha de caixa aberta que transportava passageiros entre Palma e Mpundanhar. Na semana seguinte, outras sete pessoas foram assassinadas a tiro no Posto Administrativo de Ulumbi. Um comerciante foi ainda decapitado em Maganja, distrito de Palma, no passado dia 20.
Foto: DW/G. Sousa
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Por outro lado, insistir em chamar os atacantes de "malfeitores" parece um negação da polícia da crescente violência que a população tem vivido em Cabo Delgado: decapitações, raptos, destruições, violência religiosa, tomada dos símbolos e instituições do Estado e o içar de uma bandeira de um "Estado" que não é moçambicano. O Conselho Nacional de Defesa e Segurança já admitiu que os ataques são uma "agressão externa perpetrada por terroristas".
É possível rastrear as armas?
A DW ouviu um especialista internacional em armas, que prefere não ser identificado. Descreve que os insurgentes usam "tipicamente armas pequenas, desde pistolas a armas pesadas, mas normalmente espingardas de assalto de padrão AK. E RPGs também". Outras fontes ouvidas pela DW, no terreno e/ou ligadas à segurança, falam ainda de armas do tipo G3.
Pelas características das armas, será possível perceber, através de um rastreamento, o seu circuito de produção, venda e potenciais compradores?
"É tão simples quanto vender às autoridades moçambicanas, usar e depois capturar. Acredito que com alguma corrupção por aí também. Obviamente que há venda ilegal de armas no mercado negro, mas é muito difícil dizer com precisão o percurso que a arma seguiu", responde o especialista em armas.
Abate de helicóptero sul-africano: um golpe de sorte?
No começo deste mês de abril, os insurgentes abateram um helicóptero de mercenários sul-africanos, supostamente ao serviço das autoridades moçambicanas, que efetuaram um ataque contra algumas bases suas.
Essa proeza evidencia um incremento da capacidade bélica e operativa dos insurgentes? O especialista internacional em armas diz que "não particularmente, pois informações disponíveis indicam que foram apenas os disparos de armas pequenas que derrubaram o Gazelle, que não é exatamente um aparelho blindado."
E esclarece ainda que "o disparo de armas leves pode derrubar muitas aeronaves se um componente de combustível for atingido. O evento foi uma surpresa, já que os abates de aviões de pequenos grupos como o Estado Islâmico na África Central [EI AC] são bastante raros no geral."
Quem são realmente os insurgentes?
Desde outubro de 2017, quando os insurgentes iniciaram as suas incursões armadas, até hoje, é difícil perceber claramente quem eles são, embora muito recentemente os próprios se identifiquem como "Estado Islâmico". A cada vitória alcançada, e não são poucas, os insurgentes fixam a sua bandeira do "EI" nas regiões "conquistadas". Contudo, são também identificados como Al-Shabab e como Al-Suna Wa-Jama.
Através do seu modus operandi, dará para descodificar quem está, realmente, por detrás dos atacantes e lhes dá suporte? "O Al-Suna Wa-Jama é absolutamente uma filial do 'Estado Islâmico', uma província/filial do 'Estado Islâmico' na África Central. Os seus ataques são reinvindicados diretamente pelo aparato de média do 'Estado Islâmico'. E parte dos combatentes do grupo foi visto a fazer bay'ah [promessa de fidelidade] a Abu Bakr Al-Baghdadi [líder do Estado Islâmico]", diz o especialista.
Contudo, o entrevistado acredita que "eles obviamente são um grupo local anterior, mas que foi cooptado pelo EI. Não acredito que eles estejam realmente muito ligados ao EI AC no Congo, exceto para fins de média. Quaisquer ligações a outras filiais do EI têm maior probabilidade de ser Somália, etc."