Cabo Delgado: Estudo aponta possíveis causas de insurgência
Leonel Matias (Maputo)
19 de julho de 2019
Em Moçambique, o Observatório do Meio Rural aponta a pobreza como uma das possíveis causas dos ataques armados em Cabo Delgado. E recomenda o diálogo e políticas de inclusão social contra a violência.
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A província nortenha de Cabo Delgado está a ser alvo de ataques armados desde outubro de 2017, que ainda não foram reivindicados. Os ataques provocaram já pelo menos duas centenas de mortos, alguns dos quais decapitados, milhares de deslocados e centenas de casas incendiadas.
O Observatório do Meio Rural realizou um estudo sobre este fenómeno que atinge vários distritos de Cabo Delgado, província onde se localiza um dos maiores projetos de exploração de gás natural, no norte moçambicano.
Um dos autores do estudo, o investigador João Feijó, disse à DW África que em Cabo Delgado reuniram-se algumas condições para que despoletassem tensões violentas.
"Em primeiro lugar, fenómenos de pobreza que já se prolongam há muitos anos. Mas depois, nos últimos 10 anos assiste-se a uma grande euforia em torno da exploração de recursos naturais", explicou Feijó, acrescentando que "estas descobertas precipitaram muita gente para Cabo Delgado, aumentaram as desigualdades sociais, algumas pessoas ganharam com aquilo, houve uma grande pressão sobre terrenos e as populações locais grande parte delas não beneficiaram com isto".
"Foram criadas expetativas iniciais muito grandes, as pessoas pensavam que aquilo ia ser no curto prazo, não foi", pontuou.
Desigualdades
João Feijó apontou ainda a existência de desigualdades étnico-linguísticas. A zona onde se registam os ataques é predominante da etnia Mwani, um grupo que se considera vítima de estigmatização.
O investigador ressaltou também a existência de movimentos hiperradicais e hiperextremistas islâmicos que utilizam interpretações fanáticas do alcorão, a existência de jovens que estudaram no golfo pérsico e que no regresso ao país não encontraram enquadramento nas mesquitas, e ainda conflitos entre várias facções reclamando autoridade sobre o islão.
Comentando esta semana sobre os ataques armados em Cabo Delgado, a Procuradora-Geral Adjunta da República, Amébia Chuquela, disse existirem sinais e indicações que podem levar mais tarde a afirmar que se está em face de terrorismo ou de extremismo violento.
"Nós só podemos resolver a questão de Cabo Delgado se nós começarmos também a pensar em investir nos órgãos que estão aqui no terreno a fazer a investigação, a fazer a prossecução e a fazer o julgamento destes casos", afirmou Chuquela.
Reforço institucional
O reforço institucional de organizações relacionadas com a investigação criminal e Justiça constitui uma das recomendações do estudo do Observatório do Meio Rural, o qual defende, igualmente, que importa repensar a estratégia de aposta numa única solução: a militar. "Acho que a via militar pode criar mais ressentimentos entre as populacoes", considerou o investigador João Feijó.
Cabo Delgado: "Pobreza e desigualdades podem estar na origem de ataques armados"
"Acredito que isto aqui implica negociações, implica um reforço positivo desta população no sentido de inclusão social, politicas de emprego, politicas formação, de educação. Portanto, é preciso haver um grande investimento naquela zona. Acredito que é preciso que haja amnistias para estas populações entregarem as armas".
Por seu turno, a Procuradora-Geral Adjunta da República, Amabélia Chuquela, alerta que "se nós não conseguirmos controlar a tempo e não investirmos exatamente na prevenção e na repressão este fenómeno pode alastrar-se para outras províncias".
O investigador João Feijó partilha do mesmo ponto de vista: "Até a alta Zambézia encontramos uma faixa que tem características semelhantes ao norte de Cabo Delgado maioritariamente islâmico, grande pobreza, emergência de desigualdades sociais, presenca de grandes investimentos quer extractivos quer turismo . Portanto, há condicoes para se espalhar para o sul".
O estudo do Observatório do Meio Rural recomenda, entre outras medidas, o aprofundamento da pesquisa multidisciplinar sobre a insurgência armada, a promoção de políticas de inclusão social, a enfatização das tradições locais de tolerância, a procura de soluções regionais, a fiscalização do financiamento de organizacões religiosas e de processos de branqueamento de capitais.
Cabo Delgado: Datas marcantes dos ataques armados
Começaram em outubro de 2017 em Mocímboa da Praia e já se alastraram a outros três distritos moçambicanos. Os ataques armados na província de Cabo Delgado, que somam já mais de 130 mortos, ainda não têm solução à vista.
Foto: DW/G. Sousa
Outubro de 2017
Os primeiros ataques de grupos armados desconhecidos na província de Cabo Delgado aconteceram no dia 5 de outubro de 2017 e tiveram como alvo três postos da polícia na vila de Mocímboa da Praia. Cinco pessoas morreram. Cerca de um mês depois, a 17 de novembro, as autoridades dão ordem de encerramento a algumas mesquitas por se suspeitar terem sido frequentadas por membros do grupo armado.
Foto: Privat
Dezembro de 2017
Surgem novos relatos de ataques nas aldeias de Mitumbate e Makulo, em Mocímboa da Praia. Na primeira semana de dezembro de 2017, terão sido assassinadas duas pessoas. Vários suspeitos foram identificados, tendo os moradores dado conta que os atacantes deram sinais de afiliação muçulmana. Por sua vez, a polícia desmentiu o envolvimento do grupo terrorista Al-Shabaab nestes ataques.
Foto: DW/G. Sousa
Janeiro a maio de 2018
Apesar de ter começado calmo, 2018 revelar-se-ia um ano de terror na província de Cabo Delgado com os ataques a alastrarem-se a mais distritos. Dada a gravidade da situação, a Assembleia da República aprovou, a 2 de maio, a Lei de Combate ao Terrorismo. Mas, no final do mês, dia 27, novos ataques foram realizados junto a Olumbi, distrito de Palma. Dez pessoas morreram, algumas decapitadas.
Foto: Privat
2 de junho de 2018
Dias mais tarde, a televisão STV dava conta que as forças de segurança moçambicanas haviam abatido, nas matas de Cabo Delgado, oito suspeitos de participação nos ataques. Foram ainda apreendidas catanas e uma metralhadora AK-47, além de comida e um passaporte tanzaniano. Por esta altura, já milhares de pessoas haviam abandonado as suas casas, temendo a repetição dos episódios de terror.
Foto: Borges Nhamire
4 de junho de 2018
Ainda se "festejava" os avanços na investigação das autoridades, e consequente abate dos suspeitos quando, a 4 e 7 de junho, se registaram novos incêndios nas aldeias de Naunde e Namaluco. Sete pessoas morreram e quatro ficaram feridas. Foram ainda destruídas 164 casas e quatro viaturas. O mesmo cenário voltou a repetir-se a 22 de junho: um novo ataque na aldeia de Maganja matou cinco pessoas.
Foto: Privat
29 de junho de 2018
Fortemente criticado por não se ter ainda pronunciado acerca dos ataques, o Presidente moçambicano Filipe Nyusi resolve fazê-lo, em Palma, perante um mar de gente. Oito meses e 33 mortos [25 vítimas dos ataques e oito supostos atacantes] depois... Em Cabo Delgado, Nyusi prometeu proteção aos cidadãos e convidou os atacantes a dialogar consigo, de forma a resolver as suas "insatisfações".
Foto: privat
Agosto de 2018
Depois de, em julho, um novo ataque à aldeia de Macanca - Nhica do Rovuma, em Palma, ter feito mais quatro mortos, Filipe Nyusi desafiou, a 16 de agosto, os oficiais promovidos no exército, por indicação da RENAMO, a usarem a sua experiência no combate contra estes grupos armados que, mais tarde, a 24 do mesmo mês, tirariam a vida a mais duas pessoas, na aldeia de Cobre, distrito de Macomia.
Foto: Jinty Jackson/AFP/Getty Images
Setembro de 2018
Setembro de 2018 voltava a ser um mês negro no norte de Moçambique. Ataques nas aldeias de Mocímboa da Praia, Ntoni e Ilala, em Macomia, deixaram pelo menos 15 mortos e dezenas de casas destruídas. No final do mês, o ministro da Defesa, Atanásio Mtumuke, afirmou que os homens armados responsáveis pelos ataques seriam "jovens expulsos de casa pelos pais".
Foto: Privat
Outubro de 2018
Um ano após o início dos ataques em Cabo Delgado, a polícia informou que os mais de 40 ataques ocorridos, haviam feito 90 mortos, 67 feridos e destruído milhares de casas. Foi também por esta altura que Filipe Nyusi anunciou a detenção de um cidadão estrangeiro suspeito de recrutar jovens para atacar as aldeias. No final do mês, começaram a ser julgados 180 suspeitos de envolvimento nos ataques.
Foto: privat
Novembro de 2018
Novos relatos de mortes macabras surgem na imprensa. Seis pessoas foram encontradas mortas com sinais de agressão com catana na aldeia de Pundanhar, em Palma. Dias depois, o cenário repetiu-se nas aldeias de Chicuaia Velha, Lukwamba e Litingina, distrito de Nangade. Balanço: 11 mortos. Em Pemba, o embaixador da União Europeia oferecia ajuda ao país.
Foto: Privat
6 de dezembro de 2018
A população do distrito de Nangade terá feito justiça pelas próprias mãos e morto três homens envolvidos nos ataques. Na altura, à DW, David Machimbuko, administrador do distrito de Palma, deu conta que "depois de um ataque, a população insurgiu-se e acabou por atingir alguns deles". Entretanto, o Ministério Público juntou mais nomes à lista dos arguidos neste caso. Entre eles está Andre Hanekom.
Foto: DW/N. Issufo
16 de dezembro de 2018
A 16 de dezembro, e após mais um ataque armado no distrito de Palma, que matou seis pessoas, entre as quais uma criança, Moçambique e Tanzânia anunciaram uma união de esforços no combate aos crimes transfronteiriços. 2018 chegava assim ao fim sem uma solução à vista para os ataques que já haviam feito, pelo menos, 115 mortos. O julgamento dos já acusados de envolvimento nos ataques continua.
Foto: privat
Janeiro de 2019
O novo ano não começou da melhor forma. Sete pessoas morreram quando um grupo armado intercetou uma carrinha de caixa aberta que transportava passageiros entre Palma e Mpundanhar. Na semana seguinte, outras sete pessoas foram assassinadas a tiro no Posto Administrativo de Ulumbi. Um comerciante foi ainda decapitado em Maganja, distrito de Palma, no passado dia 20.