Cabo Delgado: Jornalistas que fugiram às matas estão a salvo
Reuters | Lusa
20 de novembro de 2020
Jornalistas de rádio comunitária relatam acúmulo de corpos expostos nas aldeias e crianças abandonadas a vagar pelas estradas em Muidumbe. Forças do Governo dizem que recuperaram o controlo do distrito.
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Todos os jornalistas de uma rádio comunitária de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, estão a salvo depois de terem fugido para o mato após um ataque em Muidumbe. A informação foi divulgada num comunidade pelo Fórum Nacional de Rádios Comunitárias (FORCOM).
Os nove jornalistas da rádio São Francisco de Assis, em Muidumbe, "sobreviveram 15 dias nas matas". Aos poucos e após percorrerem longas distâncias a pé, com familiares, incluindo crianças, os sobreviventes conseguiram alcançar localidades seguras.
A jornalista Beatriz João deu um testemunho na nota divulgada pelo FORCOM, afirmando que "a situação está descontrolada, há muitas crianças, sozinhas e perdidas nas matas". Conta que cruzou com crianças "enquanto caminhava quilómetros em direção a Montepuez [onde agora se refugia]".
Igreja serviu de base
O comunicado adianta que muitos residentes, em número incerto, não conseguiram escapar e que a Igreja Paroquial do Sagrado Coração de Jesus estava a ser usada como base do grupo armado.
"Eles [insurgentes] abandonaram o anterior local onde estavam fixados devido ao cheiro dos cadáveres que se encontram de qualquer maneira nas ruas", acrescentou Beatriz João.
Moisés José, outro dos jornalistas que também se encontrava refugiado nas matas, referiu, citado no mesmo comunicado, que os insurgentes capturaram inúmeras mulheres. "Uma delas foi a minha filha de 27 anos que felizmente conseguiu fugir para as matas e juntar-se a nós", destacou. No local onde esteve refugiado durante dias, "havia muitos corpos em fase de decomposição", descreveu.
O terror no distrito de Muidumbe começou na madrugada de 31 de outubro. Os insurgentes iniciaram as ofensivas na zona alta do distrito, onde residia a maior parte da população: Ntchinga, 24 de Março, Namaculo, Nangunde, Namacande, Muatide e Muambula.
"Quando os insurgentes se aperceberam que as comunidades estavam a fugir para zona baixa, em Miangaleua, começaram a segui-las e a matar quem encontravam pelo caminho. Fugi com a minha família e ficamos escondidos nas matas por mais de 10 dias", resumiu o jornalista Hilário Tomás.
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Muidumbe recuperada
O comandante-geral da Polícia da República de Moçambique (PRM), Bernardino Rafael, disse que mais de 1.000 tropas reconquistaram esta quinta-feira (19.11) o distrito de Muidumbe. Segundo a agência Reuters, a polícia divulgou que houve 16 mortes e a logística do grupo armado teria sido destruída.
"Marchámos e chegámos ao quartel-general do distrito de Muidumbe, expulsámos aqueles que o tinham ocupado", disse Rafael em imagens transmitidas pela emissora estatal TVM após a operação.
"Parabéns aos nossos homens corajosos... o que conseguimos até agora não é uma vitória, cumprimos um passo do nosso trabalho", disse, acrescentando que os insurgentes deveriam pôr fim à violência e falar com o Governo, que está aberto ao diálogo.
Os analistas ouvidos pela agência Reuters mostram-se céticos quanto às reivindicações de vitória do Governo. Jasmine Opperman, do Armed Conflict Location and Data Project, disse que algumas aldeias próximas em Muidumbe, pelo menos, tinham sido recapturadas, embora muitos habitantes locais ainda estivessem escondidos nas matas.
Ela acrescentou que isto tinha mais importância simbólica para o Governo do que estratégica: "O Governo não podia permitir uma segunda Mocímboa da Praia".
O desterro forçado dos deslocados em Cabo Delgado
São mais de 450 mil no norte de Moçambique. O terrorismo cortou-lhes as raízes e tomou-lhes o chão. Os deslocados internos procuram vingar noutras paragens. E Pemba tem sido lugar de eleição. Sobreviverão na nova terra?
Foto: Privat
A dor da perda e da impotência
Um olhar que diz mais do que mil palavras, a imagem poderia ser "sem legenda". Foi depois de um ataque à aldeia "Criação", Muidumbe, a primeira investida terrorista ao distrito, em novembro de 2019. Os insurgentes começaram os seus ataques em Cabo Delgado em outubro de 2017.
Foto: Privat
Histórias de vida reduzidas a cinzas
Desde então, a matança e destruição passaram a ser visitas assíduas da região. Como ninguém quer ser anfitrião, os aldeões fugiram. Em finais de outubro, Muidumbe e outros distritos sangraram de novo e a população fugiu. Muidumbe está praticamente nas mãos dos terroristas, tal como Mocímboa da Praia, desde agosto.
Foto: Privat
Quase todos os caminhos vão dar a Pemba
O único desejo destes residentes de Mueda é conseguir um canto no camião para chegar à capital provincial de Cabo Delgado. Mas a disputa entre pessoas e os seus próprios pertences ameaça deixar alguém para trás. Desde meados de outubro, Pemba recebeu cerca de 12 mil deslocados. Inicialmente, recebia à volta de mil deslocados por dia.
Foto: Privat
Quando o mato passa a ser melhor que o lar
Para muitos em Cabo Delgado, ter um teto deixou de ser sinónimo de segurança. Conseguir manter a vida, mesmo sem casa, passou agora a ser a meta. Os bichos passaram a ser mais cordiais que os irmãos terroristas, as estrelas melhores que o teto e os arbustos melhores que as paredes. Famílias procuram refúgio nas matas, onde caminham por dias dominados pelo medo, sem comida e sem norte.
Foto: Privat
Um abraço amigo em Pemba
Estes deslocados chegam de Quissanga. Mas também chegam à praia de Paquitequete, Pemba, deslocados vindos de vários lugares. Todos tentam escapar ao terror. Muitos fixam-se aqui, onde recebem apoio de ONGs, associações, indivíduos e do Governo. Há até quem abra as portas da sua casa para os receber, mesmo não os conhecendo.
Foto: Privat
Crise humanitária faz brotar solidariedade infinita
A falta de quase tudo faz despertar solidariedade que chega de todo o lado. Para quem está longe, uma angariação de fundos e bens materiais é a opção. Já cuidar dos deslocados na praia de Paquitequete, atendendo-os nas suas necessidades, é o que faz quem está no terreno. Na praia, há jovens que chegam de madrugada para dar amor a quem precisa.
Foto: Privat
Uma fuga rodeada de perigos
O medo é tanto que nem a sobrelotação parece intimidar os deslocados internos. No começo de novembro, mais de 40 pessoas morreram a tentar chegar a Pemba num naufrágio entre as ilhas do Ibo e Matemo.
Foto: Privat
Pemba a rebentar pelas costuras
O "boom" de deslocados é tão grande que o sistema de serviços básicos para a população, como água e saneamento, está no limite. Antes desta nova vaga de deslocados, a capital de Cabo Delgado tinha 204 mil habitantes. Agora, tem mais de 300 mil.
Foto: DW/E. Silvestre
Começar nova vida noutro chão
O Governo criou um comité de gestão para esta crise humanitária. Afirma que está a criar novas aldeias, centros de reassentamento, infrastruturas e a parcelar terras para acomodar os deslocados. Embora esteja garantida a segurança, as suas raízes estão noutro chão.
Foto: Privat
Que futuro?
Por enquanto não há resposta. Mas há deslocados que se vão "desenrascando" para sobreviver. Muitos dizem que não querem viver de mão estendida. Por exemplo, quem tem barco vai à pesca ou trasporta mercadorias. Outros entretêm-se a jogar futebol. Vão cuidando das suas vidas. Mas para os que não têm alternativas, que são a maioria, correrão riscos de entrar para o mundo do crime?