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Cabo Delgado: "Fase da ajuda ou de estabilização?"

12 de março de 2022

O al-shabab perdeu grande capacidade de recrutamento, que hoje é feito compulsivamente, e assiste-se à deserção dos jovens, constata o OMR. Mas a ONG pede reformas, menos palavras e mais ações para a inclusão dos jovens.

Ancuabe Muarabo Sabila Umsiedlungsdorf Marokani
Jovens de Ancuabe, Cabo Delgado (foto ilustrativa)Foto: DW

"Ingredientes para uma revolta de jovens - pobreza, sociedade de consumo e expetativas frustradas" é o título do mais recente relatório do Observatório do Meio Rural (OMR), em Moçambique.

O estudo, lançado no começo de março, debruça-se sobre a situação dos jovens na província de Cabo Delgado, no norte, que desde 2017 é palco de ataques insurgentes que já mataram centenas de pessoas e deslocaram outras milhares.

A DW conversou com o investigador João Feijó, um dos autores do estudo. 

DW África: Ainda se pode falar em "ingredientes para uma revolta" quando o país já luta contra a insurgência justamente por causa do descontentamento social?

João Feijó (JF): O fenómeno hoje é diferente, enquanto que em 2020 este grupo [al-shabab] conseguia ter grande influência sobre a população jovem, e não só, em que conseguiam aliciar os jovens a aderirem através de promessas enganosas, hoje em dia essa capacidade de recrutamento de jovens diminuiu bastante, porque as pessoas estão bem mais vigilantes e a população refugiou-se no sul da província onde está a ser assistida pela ajuda humanitária. Então, isso diminuiu a vulnerabilidade [em relação à época em] que as pessoas estavam dispersas, ainda a residir nos distritos de Cabo Delgado, numa situação de vulnerabilidade em que encontravam nos al-shabab uma alternativa mais confortável do que viver onde estavam. Mas hoje claramente o cenário é diferente, é muito mais isolado, [o al-shabab] já perdeu grande capacidade de recrutamento, e pelo contrário, assiste-se à deserção de muitos jovens. Muitos preferem viver low profile, esconderem o seu passado, ficarem adormecidos, em silêncio, sendo que o recrutamento hoje é compulsivo, através de raptos.

João Feijo, investigador do OMRFoto: DW

DW África: Paralelamente à recuperação da segurança, está a ser feito um investimento em setores que potencialmente podem ajudar a acabar com o descontentmento social?

JF: O grande investimento tem sido em segurança e sobretudo em segurança e ajuda humanitária. O investimento tem sido sobretudo em investimento económico na área do gás, nomeadamente em Palma e Mocímboa da Praia, um investimento claramente direcionado para o regresso da indústria do gás. Outras zonas não têm tido grande investimento em termos de sgurança. O segundo grande investimento é na ajuda humanitária, de forma mais paleativa, no sentido de diminuir o sofrimento das populações, assistindo-as essencialmente em produtos alimentares. Isso acontece sobretudo no sul e no planalto, uma vez que já existem mais condições de segurança.

Mas investimenrto em recuperação e estabilização não, porque não existem ainda as condições de segurança. Há uma dúvida se estamos na fase da ajuda humanitária ou se já estamos a pisar em terreno de estabilização. A verdade é que há aqui uma certa ambiguidade e não sabemos se há condições para as pessoas regressarem e poderem retomar as suas atividades económicas. Em virtude da insegurança e dificuldade de acesso a terra e a meios de produção, a maioria da população continua receosa e sem capacidade para produzir e ter acesso a uma independência económica e alimentar e continua bastante vulnerável e dependente da ajuda internacional.

Deslocadas internas recebem água da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) em MuedaFoto: Igor G. Barbero/MSF

DW África: Como trabalhar para a inclusão, num contexto de guerra, onde os insurgentes estão a regressar às zonas anteriormente "limpas" pelas forças militares conjuntas?

JF: Esta inclusão no contexto de guerra não se pode fazer unicamente com workshops, ações de sensibilização ou com discursos. Isto vai se resolver com reformas que possam promover um desenvolvimento mais inclusivo. Temos de ver este processo como político, em que os atores locais estão inseridos num jogo de forças. E essas reformas passam a nível do Orçamento do Estado, que pode ser alocado mais para determinadas zonas ou para determinados setores, com mais impacto na redução do desempego, como as pescas, e agricultura, podem ser usados instrumentos como pauta aduaneira e a política fiscal. Há serviços sociais que devem ser vistos como estratégicos, como a educação, saúde ou extensão agrária. Há vias de acesso que devem ser construídas para o acesso aos locais de produção. E o grosso do investimento não pode favorecer sobretudo as populações urbanas e cidades do sul, mas favorecer o acesso aos locais onde está a maioria da população porque tem maior impacto na redução da pobreza. Sem estas reformas de despartidarização, descentralização, de fiscalização e maior transparência governativa de criação de espaços de cidadania e de exercício de cidadania, criação de infraestruturas que melhorem as populações e serviços rurais e de políticas públicas definidas a nível central, dificilmente vamos favorecer estas populações com longo histórico de exclusão e dificilmente vamos resolver com apelos ao patriotismo e à paz porque, por si só, não resolvem os problemas de fundo.

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