1. Ir para o conteúdo
  2. Ir para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

Camarões: 'Crianças são moeda de troca'

Henry-Laur Allik
22 de fevereiro de 2019

Não é fácil ser uma criança nos Camarões. A pobreza, aliada à incúria do Estado, afeta, sobretudo, os mais novos. As crianças nas regiões anglófonas dos agora têm mais um inimigo: os separatistas.

Kamerun Mädchen ohne Uniform mit Klassenkameraden in Uniform
Foto: picture-alliance/imageBROKER/H. Heine

Na luta pela independência da maioria francófona, os separatistas das regiões falantes de inglês no noroeste e sudoeste dos Camarões viraram-se contra as sua próprias crianças. Há dois anos começou uma série de raptos de alunos e professores. Há áreas na região onde crianças não têm aulas há quase três anos. No fim-de-semana passado, 170 estudantes e os seus professores foram raptados duma escola católica em Kumbo.

O bispo de Kumbo, George Nkuo, disse à DW: "Quiseram dar-nos um aviso. Os separatistas querem encerrar todas as escolas na região. A nossa era a única ainda aberta. Foi para nos castigar que levaram as crianças, por lhes termos desobedecido”.

Os alunos foram libertados um dia mais tarde, quando a escola cedeu à pressão e encerrou as portas. Um comunicado das autoridades da região do noroeste, onde ocorreu o sequestro, afirma que as crianças sofreram abusos e mesmo tortura.

Violação endémica dos direitos humanos

"Estão a usar as crianças como moeda de troca, o que não é apenas imoral, mas também ilegal”, disse à DW Jonathan Pedneault da Human Rights Watch (HRW). A organização não-governamental de defesa dos direitos humanos começou documentar ataques dos autoproclamados separatistas anglófonos contra escolas e crianças em 2016.

As crianças são as principais vítimas de qualquer conflitoFoto: DW/F. Muvunyi

A HRW não tem provas de que as crianças raptadas no último fim-de-semana tenham sido sujeitas a maus tratos. Mas há muitos casos documentados de atrocidades cometidas pelos separatistas, diz Pedneault: "Há registo de espancamentos de pessoas raptadas. Também já cortaram dedos e mãos de trabalhadores em plantações de bananas”.

As crianças nos Camarões estão assustadas. A situação é seria em sítios como Kumbo, disse à DW Rosaline, de 16 anos. "Estão a queimar casas. Estão a raptar alunos”. Rosaline deixou para trás a família e os amigos em Kumbo. Refugiou-se em casa das tias em Bamenda, para poder frequentar a escola, mesmo que de forma irregular. "A vida é muito difícil longe de casa”, afirma. Por exemplo, em Bamenda nunca há o suficiente para comer.

A vida é dura para muitas crianças nos Camarões. Segundo o fundo das Nações Unidas para a Infância, UNICEF, há 2,3 milhões de crianças em risco no país. Um em cada três menores sofre de subnutrição. As estatísticas mais recentes da Organização Mundial de Saúde (OMS) revelam que 74 em 1000 crianças morrem antes de completar os cinco anos de idade. As meninas são vitimadas pela prática da mutilação genital feminina e muitas são obrigadas a casar antes de adultas.

Pais aguardam notícias dos filhos raptados em Bamenda em Novembro de 2018Foto: Reuters/B. Eyong

A crise roubou a centenas de milhares de crianças a possibilidade de obterem uma educação, largamente reconhecida como a melhor maneira de escapar à pobreza. O encerramento regular de escolas é sentido como uma ameaça por Tracy, de 17 anos, que teme não terminar o currículo escolar. A triste ironia dos ataques dos separatistas anglófonos é que não ir à escola "reduziu o meu vocabulário inglês”, disse Tracy à DW.

Impunidade para os perpetradores

Não será o Presidente Paul Biya quem virá em socorro das crianças da região. "O Governo respondeu à crise de forma abusiva desde o início”, diz Jonathan Pedneault. Manifestantes pacíficos foram abatidos a tiro, os líderes da oposição foram presos e muitos civis perseguidos, o que "resultou numa crise humanitária de grandes dimensões”. Ela inclui 500.000 deslocados no espaço de apenas um ano. Os separatistas que estão a atacar aqueles cujos direitos afirmam defender estão a fazer o jogo de Paul Biya, diz o pesquisador da HRW: "Um dos métodos centrais da contrainsurgência é a estratégia do 'divide e impera'”, explica.

A comunidade internacional mostra grande relutância em pressionar Paul Biya. O Presidente octogenário no poder desde 1982 é considerado um aliado de confiança do ocidente na luta contra os terroristas islamitas do Boko Haram na área do Lago Chade. As Nações Unidas recebem valioso apoio logístico de Yaoundé, por exemplo, para a missão de estabilização na República Centroafricana. "Isto resulta numa manifesta falta de crítica internacional. O problema é que envia os sinais errados a quem toma decisões em Yaoundé e dentro dos grupos anglófonos, que acham que podem agir com impunidade”. O ativista gostava de ver a Alemanha mais envolvida na resolução da crise. "A Alemanha teve um papel histórico nos Camarões e há muita gente no terreno que apreciaria se mostrasse presença”.

Crianças sem futuro

Camarões: 'Crianças são usadas como moeda de troca'

This browser does not support the audio element.

O que torna a situação ainda mais trágica para as crianças nas regiões anglófonas, é que antes da crise esta era uma área relativamente desenvolvida. "Havia muita atividade comercial, especialmente no sudoeste, com emprego mesmo para os jovens”, diz Pedneault, que acrescenta. "A crise perturbou severamente a economia. Os separatistas têm vindo a atacar setores chave como as plantações de banana e a silvicultura”.

Por seu lado, "o Governo suspendeu a internet, danificando a indústria tecnológica emergente no sudoeste. As autoridades visam também os jovens, ao permitirem que soldados confisquem veículos motorizados usados como táxis”. Pedneault diz que isto está a criar um ciclo de pobreza e ressentimento que promove as simpatias dos jovens pelos separatistas.

Impedir crianças de frequentar a escola "é uma opção muito, muito perigosa”, avisa o pesquisador. Brevemente haverá um número considerável de alunos que não puderam completar o ensino e terão dificuldade em acessar uma universidade ou encontrar um bom emprego. "Trata-se de uma perspetiva deveras preocupante”, conclui Jonathan Pedneault.

 

Saltar a secção Mais sobre este tema