Ex-diretor de empresas que contraíram dívidas ocultas em Moçambique foi confrontado durante julgamento com documentos do Credit Suisse e negou ter assinado contrato sem aval do Tribunal Administrativo e do Banco Central.
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O réu António Carlos do Rosário disse esta segunda-feira (11.10) em sede de tribunal que os contratos de financiamento com o banco Credit Suisse foram visados pelo Banco de Moçambique e pelo Tribunal Administrativo.
Mas a procuradora Ana Sheila Marrengula contrariou o antigo diretor das empresas beneficiárias das dívidas ocultas, afirmando que dos autos constava que o visto do Tribunal Administrativo, do Banco de Moçambique e o parecer legal da Procuradoria-Geral da República (PGR) foram contornados.
"Se não houve efetivamente como condição prévia nem o visto do Tribunal Administrativo, conforme consta deste documento que foi junto pela senhora Maria Isaltina Lucas, o réu pode efetivamente comprovar que não houve essa condição prévia", sugeriu.
Mas António Carlos do Rosário refutou a posição do Ministério Público: "Se posso provar ou não, claro que não posso porque estou preso. Mas tiveram porque senão a Credit Suisse não assinava e não teria desembolsado o valor. Portanto, essa era a exigência. Os contratos tiveram o visto do Tribunal Administrativo e do Banco de Moçambique."
"Podemos facultar os contratos..."
A magistrada do Ministério Público mostrou ao réu os contratos que assinou com o Credit Suisse e disse que estes não seguiram os tramites legais. "Podemos facultar os contratos, especialmente para indicar em que folhas consta o visto do Tribunal Administrativo", disse.
O réu viu os documentos, voltou a negar e disse não reconhecer a sua assinatura. Acrescentou ainda que todos os documentos em posse do Ministério Público foram forjados.
"A cópia que me é dada, é perfeitamente perceptível porque não tem o visto do Tribunal Administrativo, nem a minha assinatura tem, não tem assinatura de nenhum mutuário que é a Proindicus, não tem, só é assinado pelo Credit Suisse. Nessa base, é lógico que ainda não tenha estado pronto a ser submetido para o Tribunal Administrativo e ao Banco de Moçambique", argumentou.
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Sistema "chave na mão"
Durante o julgamento, o Ministério Público perguntou a António Carlos do Rosário se os contratos assinados entre a Proindicus e a Privinvest, do tipo "chave na mão" - entrega de equipamentos prontos a usar mediante pagamento prévio -, davam garantias de transparência.
"Não havia espaço para não haver transparência, haver desconfiança porque não nos sentamos à espera de uma solução total", declarou. "Nós queríamos o sistema chave na mão."
A procuradora Ana Sheila voltou a perguntar se os signatários deste tipo de contrato com a Privinvest não poderiam criar espaço para pagamentos indevidos. "Nós comprámos uma solução de um fornecedor e o fornecedor deu-nos a solução com as especificações que nos queríamos", respondeu o réu.
António Carlos do Rosário é o último dos 19 réus a ser julgado no maior escândalo de corrupção da história de Moçambique que chegou aos 2,2 mil milhões de dólares.
Julgamento das dívidas Ocultas: "Outras coisas..."
O julgamento do caso das dívidas ocultas revela aos poucos mais informações sobre o que muitos consideram o maior escândalo de corrupção de Moçambique. Conheça as peculiaridades do caso e dos seus personagens.
Foto: Fotolia/Carlson
O caso
O escândalo das dívidas ocultas veio ao de cima entre 2013 e 2014. É a maior fraude financeira de Moçambique e prejudicou a nação e a imagem do país. Em causa estão cerca de 2 mil milhões de euros. O esquema tem como "cabeças" altos funcionários do Estado e trabalhadores de bancos como o Credit Suisse. O julgamento começou a 23 de agosto e conta com 19 arguidos, 70 testemunhas e 69 declarantes.
Foto: Roberto Paquete/DW
Julgamento nas instalações de uma cadeia
A falta de capacidade para albergar muita gente terá levado o Tribunal Judicial da Cidade de Maputo a optar pelo Estabelecimento Penitenciário Especial de Máxima Segurança da Machava para o julgamento. E é na B.O., como é conhecida a cadeia, onde estão detidos a maioria dos envolvidos no caso. Alguns dos julgamentos mais mediatizados do país costumam acontecer aqui.
Foto: Romeu da Silva/DW
Juiz da causa é de índole duvidosa?
Efigénio Baptista não tem percurso profissional imaculado, foi julgado e condenado duas vezes por ameaças e ofensas corporais num caso de abuso de poder em Manica. Também terá sido alvo de contestação popular em Sofala, que culminou com a queima da sua casa. Alguns setores questionam a escolha do juiz, defendem que deveria ter sido escolhido um juiz sénior para o caso. O "juiz júnior" tem 42 anos.
Foto: Romeu da Silva/DW
"Alérgico a corrupção" e sujeito a pressão
Sobre as condenações, o juiz Efigénio Baptista, numa entrevista ao "O País" esclareceu: "Mas eu recorri da decisão e o Tribunal de Recurso da Beira anulou-a. Por isso, eu não tenho cadastro criminal". Baptista terá estado ainda sob pressão por ser o juiz do caso mais "cabeludo" do momento. A imprensa moçambicana chegou a noticiar sobre possíveis ameaças ao juiz.
Foto: Romeu da Silva/DW
Ordem dos Advogados em representação do povo
A Ordem dos Advoagados de Moçambique (AOM) intervém no julgamento na qualidade de assistente e pretende auxiliar o Ministério Público. O objetivo é assegurar que o povo moçambicano seja informado, atualizado e esclarecido sobre os contornos do processo. São sete representantes, entre eles os ex-bastonários Gilberto Correia e Flávio Menete.
Foto: Romeu da Silva/DW
Bendita seja a mulher entre os homens...
Ana Sheila Marrengula é representante do Ministério Público no julgamento. É a única mulher entre o jurado, o que desencadeou queixas de falta de inclusão. É apreciada pelas suas questões consideradas pertinentes, mas igualmente criticada pelos seus modos pouco profissionais de questionar os réus. Pede indemnização civil ao Estado de cerca de três mil milhões de dólares acrescidos de juros.
Foto: Christoph Hardt/picture-alliance/Geisler-Fotopress
O uniforme da discórdia
No primeiro dia do julgamento os réus não se apresentaram de uniforme prisional, como é prática no país e conforme solicitação do juiz. A defesa contestou a exigência, alegando que a lei não obriga a isso, mas no final valeu a ordem de Efigénio Baptista que defende "tratamento igual" entre os presos. Na terça-feira (24.08) a cor laranja dominava a sala de audiências na B.O.
Foto: Romeu da Silva/DW
Alexandre Chivale, um advogado (in)suspeito?
Advogado da família Guebuza é a "sensação" entre os causídicos. Para além da sua postura destemida, e até entendida como de afronta, Chivale marcou o primeiro dia do julgamento. É que é administrador da Txopela, empresa suspeita do seu constituinte, Carlos do Rosário. E mais: ocupa uma das casas supostamente adquiridas com o dinheiro do calote. Tribunal deu-lhe 72 horas para deixar o imóvel.
Foto: privat
A memória curta de Cipriano Mutota
Foi a estreia do banco dos réus. Mutota revela que foi traído pelos seus parceiros do negócio na partilha dos "lucros" e não ficou contente. E não se lembra do destino dado a cerca de 656 milhões de euros que terá recebido como "luvas". O ex-diretor do Gabinete de Estudos da secreta praticamente confirmou a acusação do Ministério Público. Diz que Nyusi e Guebuza aprovaram o projeto.
Foto: Romeu da Silva/DW
Manuel Chang regressa no momento "H"
Justamente no dia do arranque do julgamento, a África do Sul anunciou a tão esperada extradição de uma das peças chave do crime, Manuel Chang. O juiz decidiu que o ex-ministro das Finanças será ouvido "na qualidade de declarante, quando estiver no território nacional", em resposta ao pedido da Ordem dos Advogados de Moçambique e reafirmado pelo Ministério Público e pelos advogados dos 19 arguidos.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
O "massagista" do sistema
Foi o lobista do negócio entre o Estado e a Privinvest, identifica-se como facilitador. Num dos emails trocado com a Privinvest mencionou uma "massagem ao sistema", mas no julgamento negou. Recebeu de Jean Boustani cerca de 8,5 milhões de dólares e recusa-se a devolver o valor, alegando que é resultante do seu trabalho. É visto como astuto, embora se tenha destacado por contradições no tribunal.
Foto: Romeu da Silva/DW
A amnésia da "cinderela"
É o terceiro réu a sentar-se no banco. Ndambi é filho do ex-Presidente Armando Guebuza é foi apelidado de cinderela pelos seus parceiros de negócios por ser lento a agir. Terá recebido 33 milhões de dólares de luvas de Jean Boustani, negociador da Privinvest. Não se recorda de quase nada que é questionado pelo juiz, diz que não tem memória de elefante. Foi um dos pivôs no tráfico de influência.