Casal condenado por manter angolana em trabalho escravo
Lusa
20 de novembro de 2021
Justiça brasileira manteve ontem (19.11) a condenação a três anos e seis meses de prisão a um casal por ter mantido uma mulher angolana em situação de trabalho análogo à escravidão, informaram fontes judiciais.
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A sentença foi mantida pela Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Paraíba, no nordeste do Brasil, e o caso envolve a ida de uma mulher de Angola para o Brasil, sob a promessa de trabalho e estudo.
Em declarações feitas à Polícia de Imigração brasileira, um dos acusados informou que, quando morava na Namíbia, a cidadã angolana trabalhava na sua residência como empregada doméstica e, ao regressar ao Brasil, decidiu levá-la consigo para que continuasse a prestar serviços à sua família.
Dessa forma, no dia 23 de abril de 2010, a angolana deu entrada no Brasil portando um visto irregular de turista, uma vez que foi levada para o país sul-americano para fins de trabalho, segundo foi confirmado pelo próprio condenado.
Visto expirado
"A vítima permaneceu trabalhando para o casal mesmo após a expiração do seu visto e, além de prestar serviços como empregada doméstica, trabalhava, também, no serviço de limpeza da fábrica de sorvete do denunciado e atendia clientes na 'sorveteria'", detalhou o Tribunal de Justiça da Paraíba em comunicado.
"Recebia um salário mensal de 600 reais (cerca de 94,7 euros, câmbio atual) por uma jornada dupla que se estendia até os finais de semana", acrescentou o tribunal.
O trabalho era prestado pela vítima sem qualquer contrato trabalhista.
"Consta que a mulher trabalhou para os acusados até o dia 07 de outubro de 2010, ocasião em que, sofrendo de cálculos renais, precisou se submeter a um tratamento cirúrgico, realizado no Hospital Universitário", acrescentou o Tribunal.
Contudo, durante o tratamento, a angolana não obteve qualquer assistência por parte dos seus patrões e, ainda convalescente, dois dias após a cirurgia, foi convocada para regressar ao trabalho pela sua patroa.
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Ameaças
A mulher angolana ofereceu resistência, mas o casal ameaçou "devolvê-la para Angola" sem o pagamento dos direitos trabalhistas, tendo mesmo chegado a comprar uma viagem de avião nesse sentido. Porém, a vítima não chegou a viajar por se encontrar ainda debilitada e por planear receber o pagamento pelos serviços prestados.
Segundo o relator do caso, as declarações da vítima mostram que, além de ter sido enganada com falsas promessas de estudo no Brasil, foi submetida a uma jornada extenuante de trabalho, sendo negligenciada pelos seus patrões no momento em que mais precisou de assistência, quando se viu doente sem poder trabalhar, necessitando de tratamento cirúrgico.
Além de ter sido constrangida a voltar ao trabalho, mesmo não tendo condições físicas para tal.
"Muito embora a aguerrida defesa tente desconstituir a acusação, sustentando a insuficiência de provas aptas a embasar uma condenação, restam sobejamente demonstrados os elementos configuradores do tipo penal, qual seja, a redução à condição análoga a de escravo", ditou o juiz.
Memórias brasileiras da escravidão
O Cais do Valongo no Rio de Janeiro, principal porto de entrada de escravos africanos no Brasil, foi eleito Património Mundial da Humanidade. Para que o crime não se repita nunca mais.
Foto: Oscar Liberal/Iphan
Atentado contra a dignidade humana
Estima-se que cerca de um milhão de africanos passaram pelo Cais do Valongo para serem vendidos, escravizados, torturados, violados e muitas vezes impunemente chacinados, no que constitui um dos maiores atentados contra a dignidade humana na História da humanidade. O cais tinha caído no esquecimento coletivo no Brasil até ser redescoberto durante obras de revitalização na zona portuária.
Foto: Oscar Liberal/Iphan
Nunca mais
Marcelo Brito, diretor do Departamento de Articulação e Fomento do Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan-Brasil), na foto à esquerda, disse à DW África que o Cais do Valongo "é um sítio de memórias sensível sobre um fato ocorrido na história da humanidade" que deve ser lembrado para "evitar que volte a ocorrer".
Foto: Fernando Holanda
Recorde de escravos
Com cinco milhões de africanos transportados à força para o Brasil a partir do século XVI, este país foi o maior importador de escravos do mundo. Foi também o último a abolir oficialmente a escravatura, em 1888. Nas escavações no Cais do Valongo foram encontradas várias provas materiais dos maus-tratos sofridos pelos escravos, incluindo valas comuns.
Foto: Bettmann Archive
Objetos oriundos de Angola e Moçambique
Nas obras de revitalização realizadas na Zona Portuária do Rio de Janeiro, no período que antecedeu os Jogos Olímpicos de 2016, foram descobertos dois ancoradouros: Valongo e Imperatriz. Os arqueólogos resgataram uma quantidade enorme de amuletos, anéis, pulseiras, jogos de búzios e objetos de culto provenientes do Congo, Angola e Moçambique.
Foto: Fernando Holanda
Preservar a memória
Ao proclamar o Cais do Valongo Partimónio Mundial da Humanidade, a UNESCO pretende que o Brasil conserve o local de modo que não se apague a memória do sofrimento terrível dos homens, mulheres e crianças que por ali passaram. Uma placa no local explica que o Cais do Valongo foi construido em 1811 expressamente para o desembarque de escravos africanos.
Foto: Fernando Holanda
A escravidão ainda existe
A escravidão no Brasil não é apenas um episódio na história antiga do país. O Índice Global de Escravatura de 2016, da fundação australiana anti-esclavagista Walk Free, parte da existência de cerca de 161 mil escravos no Brasil de hoje. Segundo a Organização Internacional do Trabalho e ativistas, na última década, as autoridades fizeram progressos na luta para pôr cobro à escravidão moderna.
Foto: Pictorial Parade/Archive Getty Images
Crime contra a humanidade
Os entrepostos no Cais do Valongo acomodavam mais de dois mil escravos em condições desumanas. A falta de espaço e higiene provocava doenças, às quais sucumbiam em massa. As escavações puseram a descoberto um cemitério com valas comuns e as ossadas de mais de seis mil africanos. O cais, diz a UNESCO, "é um local de memória, que remete a um dos mais graves crimes perpetrados contra a humanidade".