O Tribunal de Almada retomou o julgamento do caso que envolveu o espancamento de pessoas de uma mesma família no Seixal, em Portugal. Família tem esperança na Justiça lusa, apesar das críticas dos advogados ao processo.
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O Tribunal de Almada retomou esta quarta-feira (10.11) o julgamento do "Caso Jamaica", com alegações finais sobre os incidentes violentos ocorridos em 20 de janeiro de 2019, no Seixal, envolvendo uma família africana e agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP) de Portugal. Um agente da autoridade espancou a mãe Julieta, o pai Fernando e o filho Hortêncio no Bairro Jamaica, um complexo residencial constituído por prédios ilegais em fase de demolição.
Além de três testemunhas ouvidas na manhã de quarta-feira, a sessão deu lugar às últimas intervenções, com o Ministério Público a reconhecer, de acordo com os factos, que terá havido excessos por parte da polícia, mas que esta tem o dever de zelar pela segurança das populações em situações como a que se registou naquele bairro do concelho do Seixal.
Família com esperança
José Semedo Fernandes, porta-voz dos advogados da família Coxi, visada no processo judicial, mostra-se pouco crédulo em relação ao desfecho do caso. O jurista considera que o processo começou “torcido” desde o início, já na fase de inquérito.
"Não obstante de ter alguma esperança que possa correr bem, e que o tribunal até seja alertado pelas nossas alegações para algumas situações e não se sinta tão confortável na decisão, ainda podemos em sede de recurso tentar que se faça justiça", referiu à DW África.
"Mas este é um sistema que já está engrenado. Já está implementada essa questão da resistência e coação sobre funcionário público, que é um crime que já está muito experimentado e que está praticamente blindado. O melhor é não ser acusado, porque a partir do momento em que se é acusado a dificuldade é sempre maior", acrescentou.
João Correia Pinto, advogado de Tiago Andrade, o agente da polícia sobre quem recai a responsabilidade dos espancamentos, não aceitou falar à DW. "Não tenho declarações a fazer", afirmou.
Os crimes e as potenciais penas efetivas e ou multas, tanto para os arguidos da família Coxi como para Tiago Andrade, só serão conhecidos depois das últimas alegações finais agendadas para a próxima quarta-feira (17.11).
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Pedido de desculpas de André Ventura
Foi à família Coxi que o líder do partido Chega pediu desculpas, recentemente, através da comunicação social, depois de ter chamado bandidos a elementos da referida família quando era candidato às eleições presidenciais de janeiro de 2021.
André Ventura foi obrigado pela Justiça portuguesa a fazer uma retratação pública, apesar de discordar dela.
"Nós, discordando violentamente desta decisão e não compreendendo os seus pressupostos nem jurídicos nem materiais, a aceitamos porque respeitamos as decisões dos tribunais. Ao contrário de outros respeitamos as decisões dos órgãos de soberania do nosso país", disse.
"Apenas peço desculpas porque os tribunais assim me obrigaram. Por isso mesmo, por me considerar a mim e ao partido violentamente afetados por esta decisão, interpusemos recurso", acrescentou.
Por seu lado, a família, pela voz de Hortêncio Coxi não ficou satisfeita com a retratação pública apresentada por Ventura. "A nossa família não estava à espera desta retratação do André Ventura. Sabendo que ele cumpriu com a retratação pedindo desculpas diretamente ao tribunal, então a desculpa tem de ser pedida à família Coxi que ele chamou de bandidos", afirmou.
"Esperamos que a nossa advogada [Leonor Caldeira] faça uma outra interpelação ao tribunal para que ele peça desculpa diretamente à nossa família. É isto que a nossa família está à espera até agora", concluiu.
Marginalização: Onde vivem os afrodescendentes em Lisboa
Em Lisboa, vivem dispersas várias comunidades, entre as quais a africana e de afrodescendentes. Ao longo dos anos, foram submissas a uma posição social que contribuiu para a sua marginalização.
Foto: DW/J. Carlos
O caso extremo da Jamaica
Jamaica é um exemplo de marginalidade no Vale de Chícharros, situado no Seixal, no distrito de Setúbal. "As condições são incríveis. Nem se acredita", lamenta a arquiteta italiana, Elena Taviani. O realojamento das famílias, de acordo com a autarquia local, ficará completo em dezembro, antecipando o calendário para a sua conclusão em 2022. Aqui vai nascer um parque urbano e uma zona comercial.
Foto: DW/J. Carlos
Mapeamento dos bairros
A arquiteta italiana Elena Taviani decidiu fazer o mapeamento dos bairros residenciais onde é assinalável a presença de africanos e afrodescendentes para avaliar o índice de marginalização no espaço urbano na Área Metropolitana de Lisboa. O estudo em curso pretende mostrar que tais comunidades foram "empurradas" pelas estruturas do poder a ocupar uma posição marginal em Lisboa.
Foto: DW/J. Carlos
"6 de maio" em fase de extinção
No bairro "6 de maio", na Damaia, também construído por imigrantes africanos, ainda restam estruturas num raio de dois quilómetros. A forma como foram realizadas as demolições e o realojamento das pessoas que ali moravam ainda estão a ser objeto de grande debate e conflito entre a população e a Câmara Municipal.
Foto: DW/J. Carlos
Cova da Moura e o estigma da criminalidade
A Cova da Moura, no concelho da Amadora, mantém o seu traçado arquitetónico peculiar, onde é muito forte a identidade cultural africana, em particular a cabo-verdiana. Um dos bairros informais outrora rotulado de "problemático" pela imprensa "é um dos sítios onde as pessoas ainda evitam ir pelo seu forte estigma de negatividade e criminalidade", refere Elena Taviana.
Foto: DW/J. Carlos
Sinais de degradação no Bairro Amarelo
No Monte da Caparica, em Almada, fica o Bairro Amarelo. O também conhecido Bairro do Pica Pau Amarelo acolheu grupos de pessoas oriundas dos PALOP que viviam em barracas espalhadas pelo município. O bairro está minimamente dotado de infraestruturas sociais, mas notam-se sinais de degradação dos edifícios e falta de higienização nalgumas das áreas circundantes e do interior.
Foto: DW/J. Carlos
Protestos por uma melhor habitação
Ricardina Cuthbert, do precário Bairro da Torre em Camarate (Sacavém), é uma das vozes que, desde 2012, tem reclamado melhores condições de habitação para cerca de 40 famílias que lá vivem. "Tem sido um processo muito lento", lamenta a dirigente da Associação Torre Amiga.
Foto: DW/J. Carlos
Trajetória espacial dos afrodescendentes
Elena Taviani quer aprofundar o estudo sobre esses bairros para a sua tese de doutoramento a apresentar, em 2021, no Gran Sasso Science Institute (Itália). Em junho, a arquiteta publicou uma análise relativa à trajetória espacial dos afrodescendentes na revista científica de Estudos Urbanos "Cidades, Comunidades e Territórios", editada pelo Instituto Universitário de Lisboa.
Foto: DW/J. Carlos
Mouraria em transição
A Mouraria, onde vive Taviani com o marido cabo-verdiano e a filha, está numa fase de profunda renovação por força da especulação imobiliária. No passado, tinha o estereótipo de um lugar central, mas degradado, com rendas muito baixas, o que atraiu muitos imigrantes, entre os quais africanos. De acordo com a sua pesquisa, cerca de 25% dos que moram em Mouraria são originários dos PALOP.
Foto: DW/J. Carlos
Uma das zonas de referência
Apesar da inflação dos preços provocada pela valorização urbana e pelo turismo, o bairro da Mouraria ainda tem alguma presença de africanos e afrodescendentes. Ainda antes dos asiáticos, introduziram aqui o comércio de produtos oriundos de África, acabando por ser hoje uma zona de referência na capital para negócios e para quem quer fazer compras ou procurar gastronomia dos países de origem.
Foto: DW/J. Carlos
Sem razões de queixa
Januário morava numa barraca em Algés. Veio para Portugal com 16 anos e fixou-se na Outurela quando tinha 39 anos de idade. Natural de Cabo Verde, ele está em Portugal há 45 anos, já com nacionalidade portuguesa. Gosta do bairro e do convívio entre as pessoas. Os transportes funcionam bem, tem autocarros à porta. Não tem razões de queixa.
Foto: DW/J. Carlos
O bom exemplo de Outurela
Outurela – onde existe uma forte comunidade cabo-verdiana – é considerado "um caso bem sucedido" no âmbito do programa de realojamento da Câmara Municipal de Oeiras. "Os moradores dizem que tiveram sorte de serem realojados ali", afirma Elena Taviani, que menciona também o Casal da Mira, na Amadora, como um sítio onde as coisas vão melhorando, apesar do forte estigma negativo.
Foto: DW/J. Carlos
Arte urbana na Quinta do Mocho
A Quinta do Mocho, em Loures, passou a designar-se Terraços da Ponte, depois de construído. É uma das "ilhas" com grandes problemas de marginalidade. O bairro, que sempre teve uma imagem negativa, foi transformado na maior galeria de arte urbana a céu aberto da Europa com mais de cem grafittis nas suas fachadas cegas. Essa é uma tentativa de criar um novo pólo de atração turística.