ONG está preocupada com má assessoria que o Executivo moçambicano estará a receber para resolver o caso das dívidas ocultas. Diretora do CESC, Paula Monjane, diz ainda que há a perceção de "interesses acima do Governo".
Foto: Fotolia/Feng Yu
Publicidade
O Centro de Aprendizagem e Capacitação da Sociedade Civil (CESC) revela uma tentativa dos gestores do banco Credit Suisse distanciarem-se das responsabilidades no caso das dívidas ocultas moçambicanas.
Em entrevista à DW África, Paula Monjane, diretora executiva desta ONG que integra o Fórum de Monitória do Orçamento (FMO), diz que os gestores insistem em responsabilizar apenas os trabalhadores corruptos do banco pela corrupção que marca o caso. Paula Monjane esteve recentemente na Alemanha, em Bielefeld, onde falou sobre as dívidas ocultas num seminário intitulado "Eu não pago!" organizado pela KKM, uma organização moçambicana-alemã.
Paula Monjane, diretora executiva do CESCFoto: privat
DW África: A teia das dívidas ocultas vai ficando cada vez mais emaranhada e mais complexa. O que acha do caminho que o assunto está a tomar?
Paula Monjane (PM): O processo é extremamente complexo. A procissão ainda vai no adro, todos os dias aparecem novos nomes e novos contornos. Percebe-se uma teia complexa de instituições e indivíduos ao nível de Moçambique, mas em várias jurisdições e com diferentes interesses e isso complica este caso. É um caso suis generis em que há bancos, empresas, indivíduos, partidos, comissões, subornos pelo meio, e, principalmente, é um caso que está provado que foi começado com a única intenção de defraudar Moçambique e o seu povo.
DW África: E como tem sido a vossa relação com o Governo na gestão deste dossier?
PM: Mantemos uma relação cordial com o Governo. Temos tido vários encontros com o Governo, que nos tem convidado a partilhar os desenvolvimentos do assunto. Nós temos feito os nossos posicionamentos, mas também os tornamos públicos, porque achamos que temos um dever maior de partilhar as nossas posições com o público e não só com o Governo. Temos uma conversa cordial com o Governo, mas sentimos que o Governo continua mal assessorado em relação às decisões que está a tomar, e isso preocupa-nos. Mas também temos a perceção de que há interesses acima do que um Governo pode fazer e, num contexto em Moçambique onde o partido no poder dirige o Estado de uma forma que reflete os interesses desse mesmo partido, os interesses do cidadão e do Estado podem ficar comprometidos.
CESC entende que Governo está a ser mal assessorado
This browser does not support the audio element.
DW África: A sociedade civil tem também mantido encontros com outras partes envolvidas, para além da parte nacional, como por exemplo o Credit Suisse. Neste contexto, há quem entenda que há uma espécie de tentativa de personalizar este problema, ou seja, atribuir a responsabilidade a indivíduos e esvaziar a responsabilidade a instituições, justificando que terão falhado, por exemplo, regras de compliance. Acham que essas instituições estão a "tentar pular fora", como se diz na gíria popular?
PM: Claramente. Mantivemos encontros com o Credit Suisse em abril deste ano e também participámos na Assembleia Geral [do banco], e a nossa intenção clara era de trazer para os acionistas do Credit Suisse a ideia e a responsabilidade que o Credit Suisse tem em relação a estas dívidas. Os dirigentes do banco mostraram interesse e preocupação com as dívidas, mas estranhamente posicionaram-se como sendo um problema de alguns funcionários que se deixaram corromper.
Ora, o due diligence [investigação prévia] que devia ter sido feito, quer à Privinvest, que já tinha uma reputação duvidosa, quer à capacidade de Moçambique pagar estes empréstimos, quer à viabilidade dos projetos num banco do tamanho do Credit Suisse, acreditamos, como FMO, que [se tinha de passar] por vários processos para que esse dinheiro fosse desembolsado. E, muitas vezes, foi desembolsado de uma vez e não foi desembolsado para Moçambique, nós não tocámos nesse dinheiro - foi desembolsado para a Privinvest. Então, essa forma fraudulenta como as coisas aconteceram, e organizados principalmente pelo Credit Suisse, sugerem falhas no sistema do Credit Suisse. E não estamos à espera como moçambicanos que o Credit Suisse e outros bancos envolvidos não sejam responsabilizados e muito menos a Privinvest, que foi a empresa contratante que praticamente recebeu todos os recursos, à excessão dos fees [taxas] dos bancos, e depois partilhou alguns subornos, mas ficou praticamente com todo o dinheiro que devia ter ido para Moçambique.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)