Conflito no centro de Moçambique fez centenas de órfãos
Arcénio Sebastião
29 de março de 2022
Entre 2013 e 2021, muitos menores nas províncias de Sofala, Manica, Tete e Zambézia perderam os pais em tiroteios e raptos. Alguns ficaram ao cuidado de familiares, outros passaram a ser responsáveis pelo seu sustento.
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No centro de Moçambique, centenas de crianças ficaram órfãs devido ao conflito armado entre os homens armados da Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), o maior partido da oposição, e as forças do Governo da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO).
As autoridades não avançam números concretos, mas estimam que perto de 400 crianças órfãs tenham recebido assistência num período de cinco anos em quatro centros de acomodação nas províncias do centro, no momento em que muitos deslocados abandonavam as suas zonas de origem, no âmbito do conflito armado.
Só na vila de Gorongosa, na província de Sofala, cerca de 100 famílias passaram a ser lideradas por menores que perderam os encarregados de educação no conflito, segundo as autoridades municipais.
Elísio toma conta de cinco irmãos
Elísio Zacarias ficou a tomar conta dos seus cinco irmãos em 2015, quando os pais foram sequestrados. Hoje tem 20 anos e ainda reside no bairro de Nhantaca 2, onde funcionou até meados de 2018 um centro de acomodação de deslocados de guerra oriundos de Vunduzi e Canda.
O pai, secretário da FRELIMO, foi sequestrado por homens armados alegadamente da guerrilha da RENAMO e nunca mais voltou. "Nós vivíamos lá em Satundjira, perto de Vunduzi. Como o nosso pai era da FRELIMO, e naquela altura os da RENAMO procuravam membros da FRELIMO, então chegaram em casa à noite e levaram-no", recorda Elísio.
Dias depois voltaram e obrigaram a mãe a levar as panelas, galinhas e cabritos para ir cozinhar para o marido. Elísio nunca mais a viu. Até hoje, tem dificuldades para sustentar os irmãos, sem apoio das autoridades.
Ajuda das autoridades não é suficiente
"Aqui não estamos a viver bem, estamos a sofrer porque não temos comida nem roupa para vestir. Vivemos com base na venda de bambus, lenha e cadeiras de bambu que tiramos no mato", conta o jovem.
Deslocados vivem em condições deploráveis em Moçambique
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O vereador para a área de ação social no município de Gorongosa, Paulo Mufundisse, não especifica o número de crianças necessitadas que estão ao cuidado da edilidade. Mas garante que as autoridades estão a trabalhar para assegurar o seu sustento.
"Contactámos alguns enfermeiros e técnicos, algumas mães, ao nível dos bairros e vão dar capacitação a essas mães de como preparar papas nutritivas para essas crianças e o município tem apoiado na compra de alguns produtos como óleo, feijão, farinha e ovos", afirma Paulo Mufundisse.
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"Vivo numa pobreza extrema"
Tal como as aldeias de Satundjira e Canda, em Gorongosa, também Muxúngue, no distrito de Chibabava, foi palco de confrontos militares entre as forças governamentais e a guerrilha da RENAMO. O serviço distrital da ação social registou e apoia perto de 180 menores que perderam os pais em tempo de guerra.
Mas o apoio tem sido pontual e não chega para cobrir as necessidades de muitos desfavorecidos, diz Adélia Samatenge, avó de uma criança órfã em Gorongosa. "Vamos bombear água na bomba manual para vender, vivo numa pobreza extrema nem livros nem cadernos a criança tem", lamenta.
Adélia Samatenge perdeu o marido e o filho num dia de intensos combates. Os dois, conta, tinham sido raptados dias antes pelos guerrilheiros, que os obrigaram a carregar alimentos para a sua base. "Foram obrigados pela RENAMO a tirar a comida. Ele e o pai perderam-se lá, nunca mais saíram do ataque", recorda.
Desde então, Adélia tem a seu cargo um neto, agora com oito anos de idade. A mãe seria também sequestrada mais tarde, quando lavava roupa num riacho.
Acompanhamento psicológico é urgente
Casos como este devem ser acompanhados por especialistas para salvaguardar um crescimento saudável, diz o psicólogo Benedito Lopes. "É urgente mesmo que as crianças tenham um acompanhamento psicológico, porque a mente pode suscitar vários tipos de transtornos e até podem chegar a depressão grave", alerta.
Sete anos depois do desaparecimento dos pais, Elísio Zacarias não ganhou coragem para regressar à sua aldeia, onde poderia sobreviver à base da agricultura. Uma situação que não surpreende Benedito Lopes.
"Praticamente eles desenvolveram a fobia neles mesmos, vendo os pais a serem degolados. Logicamente que estas mesmas crianças não vão ter vontade de lá voltar porque pensam que lhes vão fazer a mesmíssima coisa que aos pais. Logo, estamos a ver que as crianças estão num estado depressivo", conclui o psicólogo.
Contactada pela DW África, a diretora provincial de Género, Criança e Ação Social em Sofala, Graciana Pita, disse que "não existe nenhum plano específico do Governo para apoiar as crianças órfãs de país vítimas da tensão político militar", mas sublinhou que decorrem várias ações para apoiar órfãos no geral, incluindo de país vítimas de ciclones e inundações.
Moçambique: Guerra civil com pausas de paz
A paz nunca foi uma certeza em Moçambique. Ela apenas tem intercalado confrontos militares desde a independência. Acordos de paz mal concebidos parecem estar na origem dos conflitos. Mas há novos bons sinais à vista.
Foto: Presidencia da Republica de Mocambique
O começo da guerra civil
A guerra entre o Governo da FRELIMO e a RENAMO começou em 1977, isso cerca de dois anos após a proclamação da independência do país. A RENAMO contestava a governação da FRELIMo e queria democracia. Este movimento tinha o apoio da ex-Rodésia e da África do Sul, dois vizinhos de Moçambique. A guerra matou milhões de moçambicanos e quase paralisou a economia do país.
Acabar com a guerra era o obetivo deste acordo, alcançado em 1984. Foi assinado entre os antigos Presidentes de Moçambique e da África do Sul, Samora Machel e Peter Botha, respetivamente. Ficou acordado que Pretória deixava de apoiar a RENAMO e Maputo parava o apoio ao ANC. Este último que lutava contra o Apartheid. Mas ninguém respeitou o acordo.
Foto: Avant Verlag/Birgit Weyhe
Acordo Geral de Paz de Roma
Colocou finalmente fim a guerra em 1992. Foi patrocinado pela Comunidade Santo Egídio, instituição católica italiana. Nessa altura o país já estava devastado e tinha transitado do sistema socialista para o da economia de mercado. Afosno Dhlakama, líder da RENAMO, e Joaquim Chissano, ex-Presidene de Moçambique, assinaram um acordo que pôs fim a uma guerra de 16 anos.
Eleições: nova era de desentendimentos
Em 1994 o país dava os seus primeiros passos rumo a democracia: início do multipartidarismo e realização das primeiras eleições, patrocinadas pela ONU. O primeiro Presidente eleito do país foi Joaquim Chissano. A RENAMO contestou, mas acabou por aceitar os resultados eleitorais.
Foto: Getty Images/AFP/Gianluigi Guercia
Eleições 1999: RENAMO revolta-se
Nas segundas eleições, em 1999, Joaquim Chissano e a FRELIMO voltaram a ganhar. Mas o processo foi novamente marcado por graves irregularidades, a RENAMO diz que houve fraude e contestou com mais veemência. E no ano 2000 apoiantes da RENAMO manifestaram-se em Montepuez província de Cabo Delgado, contra os resultados. Cerca de 700 manifestantes terão sido detidos e mortos por asfixia nas celas.
Foto: Marc Dietrich-Fotolia.com
Rastilho para o barril de pólvora já arde
As sucessivas irregularidades nas eleições, a lei eleitoral desajustada e difícil integração dos ex-guerrilheiros da RENAMO no exército nacional foram os principais pontos que aumentaram a tensão com o Governo. A falta de confiança que caracteriza a relação entre as partes aumentou.
Foto: Gerald Henzinger
As armas falam novamente
Em 2013 a polícia e homens da RENAMO confrontaram-se. Era o início dos conflitos armados. Nesse ano a RENAMO recusa a aprovação da Lei Eleitoral e não participa nas autárquicas. Há um interregno no conflito para a realização de eleições gerais em 2014. A RENAMO perde e acusa a FRELIMO de fraude. O país volta a ser palco de guerra. RENAMO exige governar as seis províncias onde diz ter ganho.
Foto: Fernando Veloso
Guebuza e Dhlakama: o braço de ferro até ao fim
Em setembro de 2014 o Presidente Armando Guebuza e o líder da RENAMO chegam a acordo para por fim ao conflito armado. Abriu-se assim caminho para as eleições gerais, onde a RENAMO participou. Mas as negociações entre os dois homens nunca foram fáceis. Para começar os encontros foram poucos.
Foto: Jinty Jackson/AFP/Getty Images
Na guerra vale tudo
Em Setembro de 2015 Dhlakama sofreu dois atentados. Um deles contra a coluna em que viajava, de Manica a Nampula. Afonso Dhlakama saiu ileso, mas segundo relatos morreram várias pessoas. Mais tarde várias viaturas da comitiva do líder da RENAMO foram queimadas. Dhlakama acusou a FRELIMO pelos atentados.
Foto: DW/A. Sebastião
Cerco a casa de Afonso Dhlakama
Em outubro de 2015 a guarda pessoal do líder da RENAMO foi desarmada pelas forças governamentais durante um cerco à sua residência na cidade da Beira. O Governo pretendia um desarmamento forçado dos homens da RENAMO. O desarmamento da maior força da oposição é um dos pontos controversos nas negociações de paz.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Catueira
Diálogo de paz pouco frutífero
Infindáveis rondas marcaram as negociações de paz. E em paralelo as armas falavam nas matas, membros da RENAMO eram assassinados a média de um por mês em 2016. Observadores e mediadores, nacionais e internacionais, entraram e saíram do barulho sem conseguir muito. Houve também adiamentos de rondas e algumas pausas no processo.
Foto: Leonel Matias
Dhlakama e Nyusi: maior proximidade, bons sinais
Em agosto de 2017 o Presidente Nyusi deslocou-se à Gorongosa, bastião da RENAMO, para se encontrar com Dhlakama. Os dois líderes acordaram sobre os próximos passos no processo de paz. Esperavam um acordo de paz até ao final de 2017, mas tal não deverá acontecer. Entretanto, Dhlakama está satisfeito com o andamento das negociações. O sigilo entre os dois parece ser o segredo de um bom entendimento.