Conflitos e desigualdades conduzem mundo a "beco sem saída"
Lusa
7 de janeiro de 2023
Numa análise muito crítica da situação mundial, António Guterres elencou, esta sexta-feira, em Lisboa, retrocessos em áreas como a liberdade de imprensa, direito à paz e ao desenvolvimento em todo o mundo.
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O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, alertou, esta sexta-feira (06.01), para o retrocesso dos direitos humanos e para o "beco sem saída", de que o mundo se aproxima, com o aumento de conflitos, ditaduras, opressão e desigualdades.
Em declarações em Lisboa, na Conferência Expresso 50 Anos "Deixar o Mundo Melhor", que assinala o aniversário da fundação do semanário português, o líder da ONU aproveitou para recordar outra efeméride, os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e elencar regressões em vastas áreas.
"Olhando para o que são hoje os direitos humanos numa perspetiva mais ampla dos nossos tempos, é evidente que é a negação e o retrocesso desses direitos que em larga medida constituem o beco para o qual o mundo se foi empurrando a si próprio", declarou.
Retrocessos
Referindo-se à liberdade de imprensa, Guterres salientou que esta é essencial, e insistiu na ideia de um "beco sem saída", em que "muitos dirigentes políticos pensam que a maneira de encontrar uma saída para o beco é cavando-o e, quando mais cavam, mais se afundam e, quando mais se afundam, mais cavam".
Por isso, defende que a atualidade exige "transformações tão radicais como aquelas que ocorreram no 25 de Abril, para que o mundo possa sair do beco".
O secretário-geral das Nações Unidas disse, aliás, não ser defensor da revisão da Declaração Universal dos Direitos Humanos, por estar convencido que "acabaríamos com um texto muito pior do que aquele que hoje temos".
Numa análise muito crítica da situação mundial, António Guterres começou por se referir ao direito à paz.
Embora veja "sinais de esperança aqui e ali", como "acordos frágeis" na Etiópia ou na República Democrática do Congo, destacou "o conflito central da nossa época", a guerra na Ucrânia, demonstrando uma vez mais a sua descrença numa solução imediata para o conflito:
"A verdade é que continua a não se consegue vislumbrar a curto prazo uma saída e o impacto no sofrimento do povo ucraniano, e o impacto nas consequências na economia e no bem-estar a nível global são verdadeiramente devastadores".
Rússia - Ucrânia: Uma cronologia das relações que levaram a guerra à Europa
Ao invadir a Ucrânia, o Presidente Vladimir Putin foi acusado pelos países ocidentais de provocar uma guerra na Europa. Veja aqui a cronologia dos acontecimentos que levaram à guerra entre a Rússia e a Ucrânia.
Foto: UMIT BEKTAS/REUTERS
2004
O candidato pró-Rússia, Viktor Yanukovich (na foto), é declarado Presidente, mas alegações de fraude eleitoral provocam um movimento de protesto. Conhecida como a Revolução Laranja, a iniciativa força uma nova votação, que resulta na eleição do pró-ocidental Viktor Yushchenko.
Foto: Reuters/T. Makeyeva
2005
Um ano mais tarde, o novo Presidente, Viktor Yushchenko, promete retirar a Ucrânia da órbita de Moscovo e conduzi-la em direção à NATO e União Europeia. Durante a sua campanha em 2004, Yushchenko sofreu uma tentativa de assassinato por envenenamento que o deixou desfigurado. Desde então, fez uma recuperação física total.
Foto: picture-alliance/dpa/Sputnik/A. Vitvitsky
2008
Na cimeira de Bucareste, a NATO concorda em iniciar o processo de adesão da Ucrânia e da Geórgia. "Acordámos hoje que estes países se tornarão membros da NATO", lê-se na declaração da cimeira. Na mesma cimeira, o Presidente russo, Vladimir Putin (na foto), avisou que as relações com o Ocidente dependeriam do respeito pelos interesses do seu país.
Foto: Vladimir Rodionov/dpa/picture-alliance
2010
Viktor Yanukovich derrota Yulia Tymoshenko nas presidenciais e torna-se chefe de Estado. As eleições foram consideradas justas por observadores internacionais. Uma semana antes da assinatura do acordo com a UE, Yanukovich suspende o processo e anuncia que a Ucrânia prefere juntar-se à Rússia na União Aduaneira Eurasiática.
Foto: Reuters
2013 e 2014
A decisão de Yanukovich gera uma onda de protestos de apoiantes da integração europeia. O movimento chamado "Euromaidan", por centrar as manifestações na Praça Maidan, em Kiev, tornam-se violentos. Dezenas de manifestantes são mortos, mas o Presidente acaba por ser retirado do Governo, exilando-se na Rússia.
Foto: Tomas Rafa
2014 - anexação da Crimeia
Em março, a Rússia anexa a península da Crimeia, no sudeste da Ucrânia.
Em abril, separatistas com apoio de Moscovo declaram a independência das "repúblicas" de Luhansk e de Donetsk, na região oriental ucraniana do Donbass, iniciando uma guerra que provoca 14 mil mortos em oito anos.
Foto: Imago Images
2019
O ex-ator e comediante Volodymyr Zelensky é eleito Presidente da República em 21 de abril e promete pôr fim ao conflito no leste da Ucrânia. Em 2021, apela ao novo Presidente dos Estados Unidos da América, Joe Biden, para apoiar a adesão da Ucrânia possa à NATO, colocando o país em novamente nos trilhos rumo à Europa.
Foto: picture-alliance/dpa/P. Sivkov
2021 - Março até Novembro
O Governo russo estaciona tropas perto da fronteira da Ucrânia, alegando treinos miltares.
A Ucrânia acusa Putin de ter concentrado 100 mil tropas e armamento pesado nas suas fronteiras, o que motiva um pedido de explicação dos EUA ao Kremlin. Putin acusa o Ocidente de exacerbar tensões "entregando armas modernas a Kiev e conduzindo exercícios militares provocatórios" no Mar Negro.
Foto: Maxar Technologies via REUTERS
2021 - Dezembro
Biden adverte que a Rússia será alvo de sanções económicas duras se invadir a Ucrânia.
Moscovo divulga as suas exigências ao Ocidente: tratados a proibir a adesão da Ucrânia e da Geórgia à NATO, o estabelecimento de bases militares no leste e a retirada de tropas aliadas da Roménia e da Bulgária, num regresso à situação anterior a 1997.
Foto: Brendan Smialowski/AFP
2022 - 10 de Fevereiro
Tropas russas e bielorrussas iniciam dez dias de exercícios de combate próximo da fronteira da Bielorrússia com a Ucrânia. A presença destas tropas gera mais preocupação na comunidade internacional, que vê os exercícios como um posicionamento estratégico das tropas russas, dando-lhes mais um ponto de entrada na Ucrânia.
Foto: Alexander Zemlianichenko/AP Photo/picture alliance
2022 - 21 de Fevereiro
Os líderes das autoproclamadas repúblicas populares de Donetsk e Luhansk pedem a Putin para as reconhecer como Estados independentes. Putin assina os decretos em que a Rússia reconhece a independência das regiões e ordena ao exército russo que envie uma missão de "manutenção da paz" para os territórios no leste da Ucrânia.
A NATO acusa Moscovo de fabricar um pretexto para invadir a Ucrânia.
Foto: Alexei Alexandrov/AP Photo/picture alliance
2022 - 22 de Fevereiro
Zelensky pede ao Ocidente "medidas de apoio claras e eficazes", assegura que os ucranianos "não vão ceder uma única parcela do país" e responsabiliza a Rússia por tudo o que acontecer.
Olaf Scholz, chanceler da Alemanha, diz que tomou medidas para interromper a certificação do gasoduto Nord Stream 2, numa decisão saudada pela UE e pelos EUA.
Foto: Clemens Bilan/Getty Images
2022 - 24 de Fevereiro
Tropas russas entram na Ucrânia e muitos locais são atingidos por mísseis. Vladimir Putin pronuncia um discurso no qual afirma que apenas alvos militares serão atingidos. Mas relatos de civis feridos e vídeos de ataques em zonas urbanas enchem as redes sociais. Várias baixas são reportadas nas primeiras horas do conflito.
Foto: Ukrainian President s Office/Zuma/imago images
2022 - 24 de Fevereiro
Edifícios residenciais civis atingidos durante a operação militar do Kremlin contra a Ucrânia. Relatos, vídeos e pedidos de ajuda surgem nas redes sociais, expondo vários cenários em que zonas urbanas e civis foram apanhados na destruição dos ataques militares.
Foto: UMIT BEKTAS/REUTERS
2022 - 24 de fevereiro
Muitas pessoas utilizaram as estações de metro em Kiev como abrigo durante a operação militar do Kremlin. As sirenes contra ataques aéreos soaram pela primeira vez desde a 2ª Guerra Mundial. As estações encheram-se de pessoas à procura de guarida.
Foto: Zoya Shu/AP/dpa/picture alliance
2022 - 24 de Fevereiro
Protestos contra a iniciativa militar do Kremlin surgem em vários países, incluindo na Rússia. Na foto, uma manifestante russa é detida pela polícia enquanto segura um cartaz que diz "Não à guerra!".
Foto: Dmitri Lovetsky/AP/picture alliance
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Depois apontou o direito ao desenvolvimento, em que, apesar do consenso de todos os estados na criação da agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
"Estamos a meio caminho desse percurso e é verdadeiramente dramático verificar que, em vez de os estarmos a cumprir, estamos a andar para trás em muitos deles."
Guterres descreveu um quadro de "violação permanente dos direitos económico e sociais, num mundo em que cresce a pobreza, a fome, as desigualdades e as diferenças e , ao mesmo tempo, depois da covid e suas consequências, os sistemas educativos e de saúde lutam para garantir o direito de o direito à saúde à educação".
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"Minorias oprimidas"
Referiu-se também à perda de direitos culturais, com "minorias oprimidas, étnicas e religiosas, e o direto à diferença se vê negado em tantas circunstâncias em tantas áreas do planeta", salientando igualmente a "questão central da igualdade de género que está a andar para trás de forma particularmente chocante".
Observou que mesmo nas negociações de textos das organizações internacionais, "se torna cada vez mais difícil de introduzir a perspetiva de género, e há um renascer da capacidade de o patriarcado se afirmar como forma dominante de exercer o poder nas nossas sociedades, o que é particularmente preocupante", refletindo-se no aumento da violência contra as mulheres, em situação de conflito, nas sociedades, nas famílias, que a covid veio agravar de forma significativa".
Sobre os direitos cívicos e políticos, mais uma vez o quadro é negativo, quando "vemos a democracia a recuar em varias partes do mundo, liberdade de imprensa ameaçada, mais e e mais jornalistas que são presos, torturados ou mortos, o que é totalmente intolerável nas sociedades modernas e no espaço cívico que se retrai", havendo uma "Incapacidade crescente" de cidadãos fazerem valer os seus pontos de vista em sociedades, "onde de novo assistimos a golpes de estados, ao reforço de ditaduras à imagem dos homens fortes, embora infelizmente alguns homens fortes tenham dado pouca conta de si, como vamos verificando no dia a dia".
Para o líder da ONU, "sem profundas alterações, nomeadamente ao nível das relações de poder à escala mundial, não sairemos do beco", um mundo que, considera, atravessa divisões geopolíticas, nomeadamente entre as grandes potências, em que há divisões entre o norte e o sul e agravamento das desigualdades.
Os direitos das novas gerações, prosseguiu, também estão em perigo, pela forma como se está "a perder a guerra em relação às alterações climáticas" e com o desenvolvimento de novas tecnologias, que não só "alteraram completamente as relações humanas", como podem constituir uma ameaça: "Em relação às administrações públicas, na ideia de que o mercado tudo resolvia, a verdade é que temos em toda a parte governos e organizasses internacionais menos preparadas do ponto de vista do conhecimento, da capacidade técnica do que as grandes empresas multinacionais das tecnologias de comunicação para poderem regular o seu funcionamento".
Para Guterres, "os resultados estão à vista", na perda da privacidade, deixando uma forte crítica a quem usa informações pessoais para vender ou "quem quer oprimir sociedades".