Várias famílias africanas confinadas em bairros como a Cova da Moura e Jamaica, em Portugal, reclamam por apoios do Estado durante a pandemia de Covid-19. A ajuda alimentar de algumas organizações não chega a todos.
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Eunice Varela, natural de Cabo Verde, é mãe de cinco filhos. Esta moradora da Cova da Moura, bairro periférico de Lisboa, diz que o seu orçamento familiar ficou afetado com o surto do novo coronavírus. Ela trabalhava num restaurante em Benfica que fechou.
"Tive que parar de trabalhar. Não tenho apoio nenhum, apenas recebo o abono de 500 euros”, conta.
Paulina Semedo Cardoso também mora no bairro há cerca de 18 anos. Com ela partilham a mesma habitação um irmão e a cunhada, igualmente desempregada por causa do surto da pandemia.
"Ela estava a trabalhar num restaurante em Campo de Ourique, mas está parado desde o mês de abril”, relata a moradora.
A imigrante guineense vive de reforma antecipada, com o curto subsídio que recebe da segurança social. Com a pandemia da Covid-19 não consegue outro meio de sustento.
"Trabalhava, mas agora não. Além daquela reforma antecipada não recebo mais nada”, diz.
Nem recebe qualquer apoio da Associação Moinho da Juventude, que tem apoiado com alimentos várias famílias carenciadas em situação de vulnerabilidade.
Ajuda alimentar insuficiente
Eunice Varela é uma das que recorreu à associação: "Eu fui lá na Moinho, mas disseram-me para esperar. Até então estou a esperar”.
Laurinda Furtado, há 20 anos a residir no referido bairro, faz diálise três vezes por semana e, como tal, integra os grupos de risco. Reformada por invalidez com 260 euros, esta cidadã cabo-verdiana também enfrenta sérias dificuldades.
"Eu preciso de ajuda, porque pago a renda por 250 [euros]. O meu dinheiro não chega para viver”, expõe a moradora da Cova da Moura.
Confirma, entretanto, que tem recebido a assistência alimentar necessária por parte da Moinho da Juventude: "Dias depois do surto desta doença, eles vieram cá oferecer apoio em comida: Almoço todos os dias, de segunda a sexta, para três pessoas, eu e a minha família”.
Uma mulher num mundo de homens
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A associação do bairro tem apoiado a população carenciada não só no plano alimentar. Também oferece medicamentos e desinfetantes quando é possível.
Campanha de donativos
A preocupação dos dirigentes da Moinho da Juventude prende-se com a capacidade financeira para assegurar o apoio alimentar a todos os necessitados. Por isso é que lançou uma campanha de recolha de donativos, através de uma conta bancária, cujo objetivo é assegurar a assistência social e alimentar aos moradores.
Damos agora um salto ao bairro da Jamaica, na margem sul do Tejo, também na periferia de Lisboa, onde está parado o processo de realojamento e demolição por causa da pandemia. Aqui existem igualmente algumas famílias afetadas pelos efeitos da Covid-19. Confirma Salimo Mendes, presidente da Associação .
"Há sempre famílias com dificuldades, independentemente daquelas que recebiam sempre ajuda das igrejas ou de instituições como a Junta de Freguesia”, alerta.
A associação tem servido de ponto de contacto de instituições de solidariedade social que oferecem apoio alimentar às famílias carenciadas mais vulneráveis. Algumas das quais, entre as 20 residentes que dependem apenas de subsídio de rendimento mínimo no valor de cerca de 176 euros. Preocupado com a situação de vulnerabilidade de tais famílias, Salimo realça, por outro lado, o apoio contínuo em donativos garantido mensalmente pela Associação de Solidariedade CRIAR-T.
"A cada última sexta-feira de cada mês, a maioria da população carenciada vai lá acima na sede da CRIAR-T para poderem ter esse cabaz mensal para apoiarem a família. Isso é muito bom para o bairro”, diz Salimo Mendes.
A DW África inteirou-se da realidade no dia em que elementos da associação distribuíam cinco mil máscaras de proteção contra a Covid-19 a todos os moradores do bairro. Tratou-se de um donativo de Rafael Leão, jogador português de origem angolana que veste a camisola do AC Milão, em Itália.
Marginalização: Onde vivem os afrodescendentes em Lisboa
Em Lisboa, vivem dispersas várias comunidades, entre as quais a africana e de afrodescendentes. Ao longo dos anos, foram submissas a uma posição social que contribuiu para a sua marginalização.
Foto: DW/J. Carlos
O caso extremo da Jamaica
Jamaica é um exemplo de marginalidade no Vale de Chícharros, situado no Seixal, no distrito de Setúbal. "As condições são incríveis. Nem se acredita", lamenta a arquiteta italiana, Elena Taviani. O realojamento das famílias, de acordo com a autarquia local, ficará completo em dezembro, antecipando o calendário para a sua conclusão em 2022. Aqui vai nascer um parque urbano e uma zona comercial.
Foto: DW/J. Carlos
Mapeamento dos bairros
A arquiteta italiana Elena Taviani decidiu fazer o mapeamento dos bairros residenciais onde é assinalável a presença de africanos e afrodescendentes para avaliar o índice de marginalização no espaço urbano na Área Metropolitana de Lisboa. O estudo em curso pretende mostrar que tais comunidades foram "empurradas" pelas estruturas do poder a ocupar uma posição marginal em Lisboa.
Foto: DW/J. Carlos
"6 de maio" em fase de extinção
No bairro "6 de maio", na Damaia, também construído por imigrantes africanos, ainda restam estruturas num raio de dois quilómetros. A forma como foram realizadas as demolições e o realojamento das pessoas que ali moravam ainda estão a ser objeto de grande debate e conflito entre a população e a Câmara Municipal.
Foto: DW/J. Carlos
Cova da Moura e o estigma da criminalidade
A Cova da Moura, no concelho da Amadora, mantém o seu traçado arquitetónico peculiar, onde é muito forte a identidade cultural africana, em particular a cabo-verdiana. Um dos bairros informais outrora rotulado de "problemático" pela imprensa "é um dos sítios onde as pessoas ainda evitam ir pelo seu forte estigma de negatividade e criminalidade", refere Elena Taviana.
Foto: DW/J. Carlos
Sinais de degradação no Bairro Amarelo
No Monte da Caparica, em Almada, fica o Bairro Amarelo. O também conhecido Bairro do Pica Pau Amarelo acolheu grupos de pessoas oriundas dos PALOP que viviam em barracas espalhadas pelo município. O bairro está minimamente dotado de infraestruturas sociais, mas notam-se sinais de degradação dos edifícios e falta de higienização nalgumas das áreas circundantes e do interior.
Foto: DW/J. Carlos
Protestos por uma melhor habitação
Ricardina Cuthbert, do precário Bairro da Torre em Camarate (Sacavém), é uma das vozes que, desde 2012, tem reclamado melhores condições de habitação para cerca de 40 famílias que lá vivem. "Tem sido um processo muito lento", lamenta a dirigente da Associação Torre Amiga.
Foto: DW/J. Carlos
Trajetória espacial dos afrodescendentes
Elena Taviani quer aprofundar o estudo sobre esses bairros para a sua tese de doutoramento a apresentar, em 2021, no Gran Sasso Science Institute (Itália). Em junho, a arquiteta publicou uma análise relativa à trajetória espacial dos afrodescendentes na revista científica de Estudos Urbanos "Cidades, Comunidades e Territórios", editada pelo Instituto Universitário de Lisboa.
Foto: DW/J. Carlos
Mouraria em transição
A Mouraria, onde vive Taviani com o marido cabo-verdiano e a filha, está numa fase de profunda renovação por força da especulação imobiliária. No passado, tinha o estereótipo de um lugar central, mas degradado, com rendas muito baixas, o que atraiu muitos imigrantes, entre os quais africanos. De acordo com a sua pesquisa, cerca de 25% dos que moram em Mouraria são originários dos PALOP.
Foto: DW/J. Carlos
Uma das zonas de referência
Apesar da inflação dos preços provocada pela valorização urbana e pelo turismo, o bairro da Mouraria ainda tem alguma presença de africanos e afrodescendentes. Ainda antes dos asiáticos, introduziram aqui o comércio de produtos oriundos de África, acabando por ser hoje uma zona de referência na capital para negócios e para quem quer fazer compras ou procurar gastronomia dos países de origem.
Foto: DW/J. Carlos
Sem razões de queixa
Januário morava numa barraca em Algés. Veio para Portugal com 16 anos e fixou-se na Outurela quando tinha 39 anos de idade. Natural de Cabo Verde, ele está em Portugal há 45 anos, já com nacionalidade portuguesa. Gosta do bairro e do convívio entre as pessoas. Os transportes funcionam bem, tem autocarros à porta. Não tem razões de queixa.
Foto: DW/J. Carlos
O bom exemplo de Outurela
Outurela – onde existe uma forte comunidade cabo-verdiana – é considerado "um caso bem sucedido" no âmbito do programa de realojamento da Câmara Municipal de Oeiras. "Os moradores dizem que tiveram sorte de serem realojados ali", afirma Elena Taviani, que menciona também o Casal da Mira, na Amadora, como um sítio onde as coisas vão melhorando, apesar do forte estigma negativo.
Foto: DW/J. Carlos
Arte urbana na Quinta do Mocho
A Quinta do Mocho, em Loures, passou a designar-se Terraços da Ponte, depois de construído. É uma das "ilhas" com grandes problemas de marginalidade. O bairro, que sempre teve uma imagem negativa, foi transformado na maior galeria de arte urbana a céu aberto da Europa com mais de cem grafittis nas suas fachadas cegas. Essa é uma tentativa de criar um novo pólo de atração turística.