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Crise em Moçambique: "Bispos e igrejas têm de tomar posição"

João Carlos
19 de novembro de 2024

"As igrejas têm uma responsabilidade" e devem "tomar uma posição" para mediar a crise pós-eleitoral em Moçambique, defende o investigador português Fernando Jorge Cardoso, em entrevista à DW.

Protestos após eleições em Moçambique, novembro de 2024
Os moçambicanos vivem dias consecutivos de tumulto e de protestos desde o anúncio dos resultados das eleições gerais pela CNE.Foto: Jaime Álvaro/DW

Em entrevista à DW, o investigador português Fernando Jorge Cardoso propõe um diálogo inter-religioso e a realização de novas eleições em Moçambique para resolver a crise pós-eleitoral no país

O especialista em Assuntos Africanos e professor da Universidade Autónoma de Lisboa defende que o diálogo deve ser encabeçado pelas instituições religiosas porque, de acordo com experiências do passado, estas estão em melhores condições para mediar o conflito e ajudar o país a sair do impasse político.

Fernando Jorge Cardoso argumenta que é do interesse do próprio Presidente da República, Filipe Nyusi, resolver toda esta a situação de forma transparente, em final de mandato, dizendo: "Vamos tirar isto a limpo, vamos reunir os partidos, recompor o governo de maneira a que haja maior credibilidade e vamos pedir às igrejas para nos ajudarem".

DW África: Porque defende a realização de novas eleições em Moçambique? Acha que há condições objetivas e vontade política para um diálogo entre os atores?

Fernando Jorge Cardoso (FJC): Venâncio Mondlane e todo o grupo que o apoia defende que houve uma fraude generalizada em todo o país. A partir do momento em que há uma fraude generalizada, não há nenhum candidato que possa dizer que ganhou e assumir o poder. A única coisa que pode defender é que há que repetir o ato eleitoral de uma forma em que haja credibilidade.

Em Moçambique, existe um grupo entrincheirado no poder, que eu não designarei como FRELIMO, mas sim como quem tomou conta da FRELIMO- são 100 a 200 pessoas que ficaram com os negócios todos, das minas, das terras, etc., que estão envolvidas nos raptos, etc. São vários grupos, que vão fazer o mais que puderem para que o atual Governo se mantenha [no poder]. E, perante isto, do meu ponto de vista, a única força organizada em Moçambique que pode ser ouvida pelo povo e que pode ter credibilidade, mesmo [no plano] internacional, é a comunidade religiosa.

Fernando Jorge Cardoso acredita que a comunidade religiosa está em melhores condições para mediar a crise moçambicana (foto ilustrativa)Foto: DW/R. da Silva

DW África: Considera que esta seria uma saída para a crise política em Moçambique? Acha que as igrejas estão em melhores condições para ajudar a se encontrar uma saída airosa?

FJC: Olhe para a história.Quem é que fez a paz entre a FRELIMO e a RENAMO? Foram os bispos católicos, com a ajuda da Comunidade de Santo Egídio. Foi uma organização não governamental italiana, de índole católica, que, em conjunto com os bispos moçambicanos de diversas opiniões, conseguiu sentar ambos à mesa, e os acordos de Roma foram feitos. Portanto, eu creio que, por um lado, a Igreja Católica, e por outro lado, as igrejas protestantes, particularmente as igrejas protestantes mais antigas, e também as associações islâmicas, deveriam [promover] um diálogo ecuménico, ou seja, um diálogo inter-religioso, no sentido de eles conseguirem se juntar e dizer a ambas as partes que [é necessário] parar com esta situação em Moçambique e resolver isto de maneira a que haja uma aceitação popular dos governantes. A única alternativa a isto é um golpe de Estado, mas não vejo que haja condições para isso. Nem me parece que seja o melhor cenário.

Então, vamos repetir as eleições com todo o tempo que isto vai demorar, sim. Eu acho que é mau, mas é, dentro dos males, o melhor dos males. As igrejas são a única estrutura que existe em Moçambique que está espalhada por todos os distritos e todos os concelhos. Portanto, eu acho que as igrejas deviam não só fazer apelos, mas também envolver-se no sentido de garantir à população que o processo de votação tem de voltar a ser feito e é um processo que, do início ao fim, é acompanhado por pessoas consideradas fiáveis, que sejam reconhecidas pela comunidade.

DW África: Mas os bispos católicos já se pronunciaram a propósito...

FJC: Em papel. O que eu acho é que, neste momento, há que dar um passo em frente. E esse passo em frente deve ser: "Nós estamos preparados, queremos que vocês se sentem à mesa e queremos que, de facto, esta situação seja sanada".

Acrescento mais. Acho que o Conselho Constitucional está perante uma situação impossível para o próprio Conselho Constitucional, porque se os juízes continuam a contar votos, isto nunca mais acaba. Vai até meados de dezembro, para tentar depois chegar ao fim e dizer "não foi tanto assim, há mais uns votos presos". 

Seja qual for o resultado, vai haver uma contraposição muito feroz do outro lado. Então, o que eu acho que o Conselho Constitucional tem possibilidade de fazer é dizer: "Nós já temos evidências que chegam para considerarmos que estas eleições foram fraudulentas". Portanto, "vamos parar, vamos passar a bola e solicitar que as autoridades que devem pronunciar-se sobre isto depois da nossa decisão de que não são válidas, organizem de maneira que haja eleições válidas".

Acho que, desta maneira, o Conselho Constitucional pouparia tempo. Poupava-se também a uma situação em que vai ser atacado por ambos os lados, se emitir uma posição do género "Mais 300 mil votos para aquele, menos 400 para aquele outro". A não ser que o Conselho Constitucional chegue à conclusão que "não houve fraude absolutamente nenhuma", que "tudo isto é uma ficção".

Na verdade, desde a base, as coisas foram inquinadas. Por outro lado, dizer que é a juventude e os marginais que estão na rua é não querer olhar para as próprias imagens, porque as pessoas que vivem nos prédios, nas cidades e que batem panelas não são jovens marginais desempregados. São a classe média, são os funcionários públicos, são os mais velhos, são as pessoas que [demonstram] uma insatisfação generalizada.

"Venâncio Mondlane é um agitador que está a denunciar uma fraude e tem o apoio generalizado por parte da população", afirma Fernando Jorge CardosoFoto: Alfredo Zungia/AFP

DW África: Até onde podem ir os protestos lançados pelo candidato presidencial Venâncio Mondlane, com as consequências que isso tem para Moçambique?

FJC: Pois! Quanto mais tempo demorar, mais a situação se vai deteriorar. Daí a urgência e a minha surpresa também pelo facto das igrejas estarem caladas.

DW África: Neste contexto, Venâncio Mondlane é um adversário político a considerar ou um agitador, na perspetiva da Justiça moçambicana, que deve ser condenado e retirado do xadrez político moçambicano?

FJC: Que Venâncio Mondlane é um agitador, eu não tenho a mínima dúvida. Agora, é um agitador no sentido em que está a denunciar uma fraude e tem um apoio generalizado por parte da população. Naturalmente que o lado que não quer sair do poder vai acusá-lo de ser um agitador que está a lutar contra a verdade eleitoral e que está a tentar tomar o poder por meios ilegítimos.

Ora, do meu ponto de vista, esta situação de tomar o poder por meios ilegítimos é exatamente a última coisa que Venâncio Mondlane deverá querer. Por isso, julgo que terá que se declarar estas eleições nulas e forçar a novas, mas com uma composição completamente diferente de quem está a supervisionar o processo.

Aliás, vou mais longe. Penso que deveria haver inteligência suficiente por parte de Filipe Nyusi, pois, sendo ele o Presidente da República e chefe do Governo, lhe ficaria bem sair pela porta da frente. Para que isso aconteça, ele tem de dizer assim: "Vamos tirar isto a limpo, vamos reunir os partidos, recompor o governo de maneira a que haja maior credibilidade e vamos pedir às igrejas para nos ajudarem e para terem credibilidade junto às massas de maneira a nós repetirmos a votação". Depois veremos se ganha o Daniel Chapo ou quem a FRELIMO escolher, ou se ganha o Venâncio Mondlane ou se ganha quem ganhar, mas num processo liso.

Moçambique: Crise política e o olhar do ocidente

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É por isso que eu digo que os bispos e as igrejas têm uma responsabilidade que vai muito para além de fazer comunicados. Eles têm de tomar uma posição, já o fizeram anteriormente, já o fizeram em vários contextos, em vários países. Porque é que não fazem em Moçambique? Devem fazê-lo, têm a obrigação de o fazer perante aquilo em que eles acreditam.

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