Ação do VTB contra o Estado moçambicano e a MAM em Londres visa limpar imagem do banco estatal russo e recuperar o capital, entende especialista em relações Rússia-PALOP. Mas não será este processo um contrassenso?
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No passado dia 23 de dezembro, o VTB entrou com uma ação contra o Estado moçambicano e a MAM no Tribunal Supremo do Reino Unido. O banco estatal russo emprestou cerca de 478 milhões de euros à referida empresa no contexto das dívidas ocultas, avaliadas em cerca de dois mil milhões de euros, avalizadas pelo Estado moçambicano.
Convidado a avaliar a iniciativa do VTB, o jurista Vicente Manjate começa por recordar "que se trata de uma ação resultante do incumprimento [do pagamento da dívida] do lado da contraparte moçambicana. E, nessa perspetiva, é legítima a ação do banco VTB, porque pretende recuperar os seus investimentos, sem dúvidas."
De lembrar que este banco esteve longe do "barulho" das dívidas desde que o escândalo rebentou em 2014. E, de lá para cá, as relações entre Maputo e Moscovo foram-se estreitando cada vez mais, com especial realce para os últimos dois anos.
Dívidas ocultas: Banco russo VTB processa Moçambique e MAM
Contrassenso?
Neste contexto, essa ação do banco russo não é um contrassenso? José Milhazes, especialista em relações Rússia-PALOP, entende que não. "Isso pode não ser um contrassenso, pode ser uma forma do VTB tentar safar-se de um processo ilegal, que foi a questão das dívidas ocultas de Moçambique. Esse é um dos bancos envolvidos no esquema [de corrupção] e precisa de recuperar o dinheiro que lá meteu."
Milhazes acrescenta: "Não é, de todo, bom para um banco, tanto mais estatal, ver-se envolvido em negócios deste tipo em África."
De facto, o departamento jurídico do VTB Capital, braço do banco russo para o investimento, disse em outubro de 2019 que o empréstimo representou uma "exposição significativa" para a instituição e que espera ser reembolsado.
O gás pode ser a razão desta ação?
O banco russo, que é representado pelo escritório de advogados Freshfields Bruckhaus Deringer no processo, não estará a ser usado como arma por Moscovo para encostar Maputo à parede e tirar vantagens dos recursos de Moçambique, como por exemplo no setor do gás?
José Milhazes não acredita muito nessa hipótese. Contudo, argumenta que "pode ser, tudo é possível. Mas neste momento o negócio do gás, pelo menos por aquilo que é público, está bem encaminhado. E não sei até que ponto a Rússia precisa de pressionar Moçambique ou Moçambique está em condições de colocar à Rússia determinado tipo de condições. Por isso, essa questão pode-se colocar, mas neste momento não tenho elementos que apontem para aí."
Em que situação fica Moçambique?
Segundo o jurista Vicente Manjate, tendo o Estado moçambicano perdido a oportunidade de iniciar o processo, "tal como fez com o Banco Credit Suisse", isso pode agora significar, sob o ponto de vista judicial, que terá de atuar "na defensiva".
E Mandlate prossegue, fazendo um prognóstico: "Eu acho que este processo poderá terminar com um acordo em que o Governo de Moçambique assume compromissos um pouco mais substanciais e mais realistas para o pagamento da dívida, porque a dívida existe e não há como fugir dela."
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)