A PGR suíça abriu uma investigação contra "pessoas desconhecidas" sobre o caso das "dívidas ocultas". Economista João Mosca entende que termo meio vago espelha um pouco o que foi feito no relatório Kroll, por precaução.
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O processo começou em fevereiro na Suíça a pedido das autoridades moçambicanas, noticiou esta sexta-feira (05.06) a agência Lusa. A Procuradoria-Geral da República (PGR) suíça abriu um procedimento criminal "contra pessoas desconhecidas", por "suspeita de lavagem de dinheiro".
O organismo promete que "não fará mais comentários sobre estes procedimentos ou sobre mais passos processuais nesta altura". As autoridades suíças dizem apenas que não há prognóstico de prazos e remetem mais informações para Moçambique.
À DW África, o economista moçambicano João Mosca explica que é "normal" que a PGR esteja a agir com precaução "até que se cheguem a conclusões, com provas."
DW África: A PGR suíça abriu uma investigação contra "pessoas desconhecidas", uma medida relacionada as dívidas ocultas moçambicanas. O que se advinha estar por detrás do pronunciamento meio vago da PGR suíça?
João Mosca (JM): As"pessoas desconhecidas" vêm um pouco no âmbito daquilo que foi o relatório Kroll, que também se referia às pessoas com letras que, muitas vezes, nada tinham a ver com os nomes das pessoas. Portanto, acho que é uma medida de precaução, de segredo de justiça, que eles terão de ter - para iniciar o processo judicial, naturalmente que eles têm as pistas e elementos comprovativos, à partida, que permitem o início de uma investigação. Acho que é um procedimento jurídico absolutamente normal. Até que se cheguem a conclusões, com provas, o processo mantém-se em segredo de justiça. Penso que esse processo que a PGR suíça está a utilizar é normal, não é nada de novo.
DW África: Esta é a segunda ação judicial internacional, a pedido das autoridades moçambicanas. No Reino Unido já decorre outra. Como espera que a Justiça moçambicana venha a usar os resultados destas ações para o processo das dívidas ocultas em curso, em Moçambique?
JM: Penso que a Justiça moçambicana terá sempre a tendência de se arrastar no tempo, de esperar que haja evidências de sistemas judiciais externos - não tomar iniciativa e depois atuar em função daquilo que forem a decisões da justiça internacional. Assim está a acontecer também com a prisão e eventual repatriamento de Manuel Chang ou a sua ida para os EUA. Portanto, só depois dele ter sido preso [na África do Sul] é que a PGR tomou a iniciativa de pegar no assunto. Penso que será a mesma tática que irá adotar, na medida em que o sistema judicial moçambicano não tem qualquer autonomia em relação ao poder político. E está subordinado a não desvendar os grandes atores deste crime e da ilegalidade acerca das dívidas.
DW África: Um dos bancos envolvidos é suíço e altamente prestigiado, o Credit Suisse. Como espera que uma empresa destas venha a ser tratada pela justiça suíça num caso que envolve um país considerado altamente corrupto como Moçambique?
JM: Penso que o banco suíço foi envolvido numa ratoeira, envolvendo altas personalidades de diferentes Estados, incluindo o Estado francês, e através de gestores ou atores financeiros internacionais, alguns dos quais eventualmente não havia, até ao momento, motivos de dúvida. Agora, também é verdade que o banco suíço não perfez os procedimentos necessários de averiguação de quem eram os atores, de quais eram as viabilidades económicas dos projetos e quais eram os reais objetivos no seu contexto moçambicano - e inclusivamente do seu contexto de conflitualidades internas em Moçambique - e a capacidade que Moçambique tem em vários aspetos económicos e financeiros, recursos humanos e de organização para manter o tipo de empresas que se estavam a montar com os recursos que estavam a ser financiados internacionalmente. Portanto, houve aqui erros graves por parte do banco suíço e também, eventualmente, confiança demasiada em organizações e dirigentes de alto nível dos três países e em atores financeiros internacionais. Houve aqui um grande desleixo, não houve o cumprimento das regras internacionais de financiamento.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)