Dívidas ocultas: Administradora do banco central chantageada
Lusa
22 de novembro de 2021
Administradora do Banco de Moçambique Silvina de Abreu disse hoje que sofreu "chantagem emocional e pressão" da secreta para dar parecer favorável à contração das dívidas ocultas, por serem de "importância estratégica".
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A administradora do Banco de Moçambique Silvina de Abreu revelou nesta segunda-feira (22.11.): "Senti esses aspetos todos na minha pele, tenho essas sequelas e até aqui o assunto me persegue".
Abreu falava como declarante no julgamento do processo principal das dívidas ocultas que decorre no Tribunal Judicial da Cidade de Maputo. Avançou que a "chantagem emocional e psicológica" foi exercida por António Carlos do Rosário, então diretor da Inteligência Económica do Serviço de Informações e Segurança do Estado (SISE) e arguido no caso.
"Fazia chantagem emocional forte.(...) Ele estava sempre a referir que tínhamos que ser patriotas e nós não devíamos estar a criar constrangimentos para que os projetos avançassem", afirmou.
O então diretor da Inteligência Económica do SISE, prosseguiu, descrevia os projetos usados para contrair as dívidas ocultas como de "importância estratégica para a defesa da soberania da pátria e do nacionalismo económico do país".
Numa das ocasiões, António Carlos do Rosário mostrou uma foto de Afonso Dlhakama, defunto líder da Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), principal partido da oposição, ao lado de um helicóptero e de um "homem de raça branca", como alegada prova de que o país estava a ser alvo de ações hostis movidas a partir do estrangeiro.
Na altura, Moçambique vivia uma tensão política e militar na sequência da recusa da RENAMO em aceitar a derrota nas eleições gerais de 2009.
"Ele estava constantemente a insurgir-se"
Essas supostas atividades subversivas precisavam de ser travadas através de um melhor apetrechamento das capacidades de defesa e segurança do país, contexto que justificava a contração de dívidas, continuou Silvina de Abreu, reconstituindo o ambiente dos encontros com António Carlos do Rosário.
"Ele estava constantemente a insurgir-se e a querer ter a resposta [em relação ao pedido de autorização do Banco de Moçambique] pronta", enfatizou Silvina de Abreu.
Abreu declarou que na altura o governador do Banco de Moçambique, Ernesto Gove, também deu nota à sua equipa de assessores do caráter urgente da matéria relativa às dívidas ocultas, dada a pressão que estava a ser exercida pelos serviços secretos.
"Recebi uma chamada do governador Ernesto Gove para que tratasse [do assunto] de forma sigilosa, porque se impunha sigilo por se tratar de uma matéria ligada à soberania do Estado", avançou.
Silvina de Abreu assinalou que expressou dúvidas em relação a um segundo pedido de autorização do financiamento da Empresa Moçambicana de Atum (Ematum), dado que o regulador já tinha anuído a favor de um primeiro empréstimo para a mesma companhia.
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Só emitia parecer
Questionada se o Banco de Moçambique tinha competência para a autorização dos empréstimos das três empresas beneficiárias das dívidas ocultas, dado que as mesmas tinham estatuto jurídico de entidades privadas com garantias do Estado, Silvina de Abreu salientou que a ela só competia emitir parecer "para consideração superior" do governador do banco central.
Abreu explicou que os pareces técnicos favoráveis emitidos pelos peritos do Banco de Moçambique tiveram em conta a importância estratégica dos projetos que deviam ser financiados pelo dinheiro das dívidas ocultas, taxas de juro, período de diferimento do pagamento dos encargos e de amortização, bem como o potencial de geração de divisas, através de exportações de bens e serviços que seriam criados pelas empresas.
Silvina de Abreu era à data dos empréstimos diretora do Departamento do Estrangeiro, uma divisão do Banco de Moçambique responsável pela supervisão de operações financeiras com o exterior e é a terceira técnica superior do banco central a depor como declarante.
As suspeitas do MP
Ainda vai ser ouvido em tribunal o antigo governador do Banco de Moçambique Ernesto Gove. O Ministério Público (MP) considera que as empresas Proindicus, Ematum e Mozambque Asset Management (MAM) foram propositadamente criadas para servirem de ardis para a mobilização do dinheiro das dívidas ocultas, que alimentaram um gigantesco esquema de corrupção.
A justiça moçambicana acusa os 19 arguidos do processo principal de se terem associado em "quadrilha" e delapidado o Estado moçambicano em 2,7 mil milhões de dólares (2,28 mil milhões de euros) - valor apontado pela procuradoria e superior aos 2,2 mil milhões de dólares até agora conhecidos no caso - angariados junto de bancos internacionais através de garantias prestadas pelo Governo.
Os empréstimos foram secretamente avalizados pelo Governo da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), liderado pelo Presidente da República à época, Armando Guebuza, sem o conhecimento do parlamento e do Tribunal Administrativo.
Julgamento das dívidas Ocultas: "Outras coisas..."
O julgamento do caso das dívidas ocultas revela aos poucos mais informações sobre o que muitos consideram o maior escândalo de corrupção de Moçambique. Conheça as peculiaridades do caso e dos seus personagens.
Foto: Fotolia/Carlson
O caso
O escândalo das dívidas ocultas veio ao de cima entre 2013 e 2014. É a maior fraude financeira de Moçambique e prejudicou a nação e a imagem do país. Em causa estão cerca de 2 mil milhões de euros. O esquema tem como "cabeças" altos funcionários do Estado e trabalhadores de bancos como o Credit Suisse. O julgamento começou a 23 de agosto e conta com 19 arguidos, 70 testemunhas e 69 declarantes.
Foto: Roberto Paquete/DW
Julgamento nas instalações de uma cadeia
A falta de capacidade para albergar muita gente terá levado o Tribunal Judicial da Cidade de Maputo a optar pelo Estabelecimento Penitenciário Especial de Máxima Segurança da Machava para o julgamento. E é na B.O., como é conhecida a cadeia, onde estão detidos a maioria dos envolvidos no caso. Alguns dos julgamentos mais mediatizados do país costumam acontecer aqui.
Foto: Romeu da Silva/DW
Juiz da causa é de índole duvidosa?
Efigénio Baptista não tem percurso profissional imaculado, foi julgado e condenado duas vezes por ameaças e ofensas corporais num caso de abuso de poder em Manica. Também terá sido alvo de contestação popular em Sofala, que culminou com a queima da sua casa. Alguns setores questionam a escolha do juiz, defendem que deveria ter sido escolhido um juiz sénior para o caso. O "juiz júnior" tem 42 anos.
Foto: Romeu da Silva/DW
"Alérgico a corrupção" e sujeito a pressão
Sobre as condenações, o juiz Efigénio Baptista, numa entrevista ao "O País" esclareceu: "Mas eu recorri da decisão e o Tribunal de Recurso da Beira anulou-a. Por isso, eu não tenho cadastro criminal". Baptista terá estado ainda sob pressão por ser o juiz do caso mais "cabeludo" do momento. A imprensa moçambicana chegou a noticiar sobre possíveis ameaças ao juiz.
Foto: Romeu da Silva/DW
Ordem dos Advogados em representação do povo
A Ordem dos Advoagados de Moçambique (AOM) intervém no julgamento na qualidade de assistente e pretende auxiliar o Ministério Público. O objetivo é assegurar que o povo moçambicano seja informado, atualizado e esclarecido sobre os contornos do processo. São sete representantes, entre eles os ex-bastonários Gilberto Correia e Flávio Menete.
Foto: Romeu da Silva/DW
Bendita seja a mulher entre os homens...
Ana Sheila Marrengula é representante do Ministério Público no julgamento. É a única mulher entre o jurado, o que desencadeou queixas de falta de inclusão. É apreciada pelas suas questões consideradas pertinentes, mas igualmente criticada pelos seus modos pouco profissionais de questionar os réus. Pede indemnização civil ao Estado de cerca de três mil milhões de dólares acrescidos de juros.
Foto: Christoph Hardt/picture-alliance/Geisler-Fotopress
O uniforme da discórdia
No primeiro dia do julgamento os réus não se apresentaram de uniforme prisional, como é prática no país e conforme solicitação do juiz. A defesa contestou a exigência, alegando que a lei não obriga a isso, mas no final valeu a ordem de Efigénio Baptista que defende "tratamento igual" entre os presos. Na terça-feira (24.08) a cor laranja dominava a sala de audiências na B.O.
Foto: Romeu da Silva/DW
Alexandre Chivale, um advogado (in)suspeito?
Advogado da família Guebuza é a "sensação" entre os causídicos. Para além da sua postura destemida, e até entendida como de afronta, Chivale marcou o primeiro dia do julgamento. É que é administrador da Txopela, empresa suspeita do seu constituinte, Carlos do Rosário. E mais: ocupa uma das casas supostamente adquiridas com o dinheiro do calote. Tribunal deu-lhe 72 horas para deixar o imóvel.
Foto: privat
A memória curta de Cipriano Mutota
Foi a estreia do banco dos réus. Mutota revela que foi traído pelos seus parceiros do negócio na partilha dos "lucros" e não ficou contente. E não se lembra do destino dado a cerca de 656 milhões de euros que terá recebido como "luvas". O ex-diretor do Gabinete de Estudos da secreta praticamente confirmou a acusação do Ministério Público. Diz que Nyusi e Guebuza aprovaram o projeto.
Foto: Romeu da Silva/DW
Manuel Chang regressa no momento "H"
Justamente no dia do arranque do julgamento, a África do Sul anunciou a tão esperada extradição de uma das peças chave do crime, Manuel Chang. O juiz decidiu que o ex-ministro das Finanças será ouvido "na qualidade de declarante, quando estiver no território nacional", em resposta ao pedido da Ordem dos Advogados de Moçambique e reafirmado pelo Ministério Público e pelos advogados dos 19 arguidos.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
O "massagista" do sistema
Foi o lobista do negócio entre o Estado e a Privinvest, identifica-se como facilitador. Num dos emails trocado com a Privinvest mencionou uma "massagem ao sistema", mas no julgamento negou. Recebeu de Jean Boustani cerca de 8,5 milhões de dólares e recusa-se a devolver o valor, alegando que é resultante do seu trabalho. É visto como astuto, embora se tenha destacado por contradições no tribunal.
Foto: Romeu da Silva/DW
A amnésia da "cinderela"
É o terceiro réu a sentar-se no banco. Ndambi é filho do ex-Presidente Armando Guebuza é foi apelidado de cinderela pelos seus parceiros de negócios por ser lento a agir. Terá recebido 33 milhões de dólares de luvas de Jean Boustani, negociador da Privinvest. Não se recorda de quase nada que é questionado pelo juiz, diz que não tem memória de elefante. Foi um dos pivôs no tráfico de influência.