Dívidas ocultas: Como recuperar ativos no estrangeiro?
António Cascais
1 de março de 2022
Baltazar Fael, jurista do CIP em Moçambique, afirma que os arguidos possuem mais do que apenas bens monetários e que o Estado recuperou apenas 15.6% dos 2.2 biliões de dólares perdidos.
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O jurista Baltazar Fael, da organização não-governamental moçambicana Centro de Integridade Pública (CIP) considera que a recuperação de ativos comprados com o dinheiro das dívidas ocultas será ineficaz, porque parte do património está escondido no estrangeiro.
"A criminalidade organizada tem assumido a característica de transnacionalidade, quando envolve crimes de natureza económico-financeira, em que os agentes procuram esconder os ativos obtidos ilicitamente noutros países e não nos da sua origem, para se furtarem às ações da justiça", refere uma análise do CIP.
O estudo intitulado "Processo das dívidas ocultas: ainda é possível recuperar um volume substancial dos ativos?" observa que face a situações deste tipo, a Assembleia da República deve produzir uma lei de repatriamento de capitais para tornar o regime jurídico de recuperação de ativos mais eficaz.
Em entrevista à DW, o jurista e autor da análise publicada no site do CIP começa por falar sobre as conclusões a que chegou neste estudo.
"As conclusões a que chegamos é que até este momento, o volume de artigos recuperados ainda não é satisfatório. No sentido em que dos 2.2 biliões de dólares que o Estado diz ter perdido por ações dos arguidos, só conseguiu recuperar 15.6 %. Portanto, ainda é um valor muito baixo."
DW África: Na sua opinião, os réus, em teoria, possuem ativos que poderiam ser confiscados pelo Estado moçambicano?
BF: Penso que ativos monetários e também imóveis.
DW África: Muitos dos arguidos terão escondido os seus ativos fora do pais?
BF: Acredito que sim. Porque quem fez esta fraude, foi aos bancos internacionais buscar o dinheiro. Depois de ter o dinheiro, pagou subornos a funcionários públicos moçambicanos. É importante que o Estado privilegie as instâncias internacionais, porque acreditamos que, se tiver sucesso, é lá fora que vai conseguir recuperar a maioria dos grandes ativos na posse dos arguidos e empresas estrangeiras.
DW África: As instâncias competentes em Moçambique têm os meios e capacidade necessárias para a realização de investigações financeiras desta envergadura?
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BF: Há uma distância muito grande entre aquilo que são os valores desviados e o que se consegue recuperar. Foi isto que levou a Procuradora Geral da República a solicitar que possa aprovar um regime jurídico especifico de recuperação de ativos.
DW África: Como assegurar a eficácia da recuperação dos ativos?
BF: É preciso atender à legislação dos países onde já tenham sido identificados bens ou contas bancárias desses arguidos. E mais importante, é preciso que as autoridades moçambicanas assinem - ou já tenham assinado - acordos bilaterais com esses Estados. Não é uma matéria fácil, pois há regras burocráticas a seguir.
DW África: Na sua análise, levanta ainda outro possível problema. A transparência no levantamento dos ativos recuperados. Essa transparência está assegurada em Moçambique?
BF: Na minha opinião, não. Ao longo dos anos, o Estado vai recuperando ativos. O que nós desconhecemos é o destino desses mesmos ativos. É de interesse público, por isso, é importante que isto seja esclarecido, porque com os níveis de corrupção em Moçambique, levantamos a hipótese destes valores serem usados para outros fins que não os previstos.
Moçambique: Propriedades e instituições ligadas às "dívidas ocultas"
O processo denominado "dívidas ocultas" envolve não apenas pessoas de muitos quadrantes políticos e sociais, mas também empresas, propriedades e instituições.
Foto: Romeu da Silva/DW
O julgamento das "dívidas ocultas" decorre no Tribunal Judicial da Cidade de Maputo
O processo decorre no Tribunal Judicial da Cidade de Maputo desde 23 de Agosto de 2021. A sexta sessão revelou que arguidos e declarantes adquiriram residências luxuosas e criaram empresas de lavagem de dinheiro. A sociedade moçambicana ficou a conhecer a extensão da lesão que sofreu por causa das dividas ocultas.
Foto: Romeu da Silva/DW
Tudo começou no bairro de Sommerschield
Tudo começou no bairro de elite da Sommerschield, onde fica a sede do Serviço de Informações e Segurança do Estado (SISE). Não se trata do edifício na foto, já que é proibido fotografar o edifício do SISE. Mas foi nas suas instalações que foi desenvolvido o projeto de proteção da Zona Económica Exclusiva (ZEE), que acabou endividando o Estado em cerca de 2,2 mil milhões de dólares.
Foto: Romeu da Silva/DW
Lavagem de dinheiro
No julgamento, o Ministério Público (MP) acusou o réu António Carlos do Rosário de ser proprietário de vários apartamentos neste edifício chamado Deco Residence. O MP refere que do Rosário comprou, em 2013, três apartamentos, no valor de 500 mil dólares cada. O valor foi transferido pela IRS para a Txopela Investiments, de que era administrador.
Foto: Romeu da Silva/DW
Tribunal confisca apartamentos
Alexandre Chivale, advogado do réu António Carlos do Rosário, ocupava um apartamento aqui na Deco Assos. Foi obrigado a abandonar a unidade e a entregar a chave ao Tribunal de Maputo. A área residencial está a ser construída ao longo da marginal, uma zona que passou a ser muito concorrida.
Foto: Romeu da Silva/DW
Apartamento Xenon
António Carlos do Rosário também terá "metido a mão" neste imóvel. Na acusação consta que, em 2015, a Txopela transferiu 2,9 milhões de dólares para a Imobiliária ImoMoz para a compra de apartamentos neste edifício, que antes funcionava como cinema Xenon.
Foto: Romeu da Silva/DW
Alerta lançado pela INAMAR foi ignorado
A INAMAR é uma empresa que se dedica à inspeção naval. No processo da contratação das dívidas, a INAMAR avisou que os barcos da empresa pública EMATUM, que custaram 600 milhões de dólares, foram construídos à revelia das normas. Por causa das irregularidades, a INAMAR chumbou as embarcações. E alertou as autoridades relevantes, que ignoraram o relatório.
Foto: Romeu da Silva/DW
Casa de câmbios transformada em "lavandaria"
A Africâmbios transformou-se numa casa na lavagem de dinheiro. Alguns funcionários foram obrigados a abrir contas, usadas pelos seus superiores para a transferência de dinheiro da empresa Privinvest, igualmente envolvida no escândalo. O proprietário da Africâmbios, Taquir Wahaj, fugiu e é procurado pela justiça moçambicana.
Foto: Romeu da Silva/DW
Presidência e reuniões do comando conjunto
A presidência da República, perto da edifício da secreta moçambicana, acolheu algumas reuniões do Comando Conjunto e Operativo onde estiveram os ministros da Defesa, Filipe Nyusi, atual Presidente da República, Alberto Mondlane, ministro do Interior e elementos do SISE. Há muita pressão para que o antigo Presidente Guebuza e Nyusi sejam ouvidos como réus e não como declarantes no caso.
Foto: Romeu da Silva/DW
MINT fazia para do Comando Conjunto
O Ministério do Interior, assim como o Ministério da Defesa, eram considerados cruciais no projeto de Proteção da Zona Económica Exclusiva. O tribunal tem na lista de declarantes o antigo ministro Alberto Mondlane para prestar declarações e o papel que este Ministério teve na contratação das dívidas ocultas.