Dívidas ocultas: Credit Suisse pode fazer Nyusi virar réu
Lusa
31 de agosto de 2020
Num documento à justiça britânica, Credit Suisse admite arrolar Presidente para responder por alegada "irregularidade". Privinvest teria feito referência a Filipe Nyusi num pagamento a uma empresa nos Emirados Árabes.
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O Credit Suisse ameaça arrolar o Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, no caso que opõe o banco de investimento ao Estado africano no Tribunal Superior de Londres no âmbito do escândalo das dívidas ocultas - que deverá ser julgado a partir de janeiro de 2021.
Num documento submetido ao tribunal, o Credit Suisse admite adicionar o chefe de Estado ao processo como réu "para responder pelas suas irregularidades". Os advogados do banco terão solicitado às autoridades moçambicanas, numa carta de 11 de maio, a confirmação de que o chefe de Estado não reivindica ou se reunia à imunidade relativamente a este caso. No entanto, até julho os advogados não haviam recebido resposta.
A Procuradoria-Geral de Moçambique iniciou este caso na justiça britânica para tentar anular a dívida de 622 milhões de dólares (552,6 milhões de euros) da empresa estatal Proindicus ao Credit Suisse e pedir uma indemnização que cubra todas as perdas resultantes do escândalo das dívidas ocultas.
Em causa estão as dívidas ocultas do Estado moçambicano de cerca de 2 mil milhões de dólares (1,8 mil milhões de euros) contraídas entre 2013 e 2014 em forma de crédito junto das filiais britânicas dos bancos de investimentos Credit Suisse e VTB em nome das empresas estatais moçambicanas Proindicus, Ematum e MAM.
O negócio acentuou a uma crise financeira pública e levou Moçambique a entrar em incumprimento no pagamento aos credores internacionais.
No caso de o Credit Suisse ser considerado culpado, o Presidente Nyusi - justifica o banco na argumentação de defesa atualizada, depositada no tribunal no início de julho - pode ser suscetível a pagar uma "indemnização ou contribuição".
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Indícios que levariam a Nyusi
Na base da potencial responsabilidade está, nomeadamente, a referência a um pagamento de um milhão de dólares feito em 2014 pela Privinvest a uma empresa estabelecida nos Emirados Árabes Unidos com as referências 'Nys', 'New man', 'Nuy' ou 'New guy', que os advogados do banco sugerem que se trataria de Nyusi, na altura ministro da Defesa, devido à semelhança com o nome.
Outro indício é o depoimento do libanês Jean Boustani - negociador da empresa Privinvest, durante um julgamento nos Estados Unidos da América (EUA) ligado ao caso - alegando que terá reservado 6 milhões de dólares para financiar a campanha eleitoral do atual Presidente.
Acusado pela Procuradoria federal dos EUA de conspirações para cometer fraude de transferências, fraude de valores mobiliários e lavagem de dinheiro, Boustani foi considerado inocente.
O Credit Suisse atribui também um "papel substantivo do Presidente Nyusi na consideração e aprovação das transações Proindicus e Ematum" e que, tendo assumindo que pagamentos foram feitos a outros membros e funcionários do Governo, "seriam necessários pagamentos a ele para que as transações ocorressem".
"Responsável como co-conspirador"
Os advogados do banco alegam que, se realmente for provado que o negócio foi ilícito, como invoca a queixa, "o Presidente Nyusi participou nela através (pelo menos) por alegada aceitação de suborno e violação dos deveres da lei moçambicana", podendo ser "responsável como co-conspirador".
Na semana passada soube-se que o antigo Presidente da República Armando Guebuza foi arrolado no processocomo pessoa relevante para ajudar a esclarecer o caso. Na lista de 'Terceiros' [Third Parties] encontram-se o filho mais velho, Armando Ndambi Guebuza, o antigo diretor dos Serviços de Informação e Segurança do Estado (SISE), Gregório Leão, o antigo diretor de Inteligência Económica do SISE, António Carlos do Rosário, o antigo ministro das Finanças, Manuel Chang, e a ex-diretora nacional do Tesouro de Moçambique, Isaltina Lucas.
O tribunal pretende igualmente ouvir Teófilo Nhangumele e Bruno Langa - duas pessoas próximas de Armando Ndambi Guebuza. À exceção de Armando Guebuza e de Isaltina Lucas, todas as personalidades que o Tribunal Superior de Justiça de Londres pretende ouvir estão detidos em Moçambique acusados de envolvimento no escândalo das 'dívidas ocultas'.
Iskandar Safa, proprietário da Privinvest, passou também a estar referido no processo como assistente. O julgamento no Tribunal Comercial do Tribunal Superior de Londres só está previsto começar em 2021.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)