Ministério Público admite ação cível para exigir aos funcionários envolvidos nas dívidas da EMATUM a devolução do dinheiro. Centro de Integridade Pública espera que não seja apenas um anúncio de caráter eleitoralista.
Publicidade
O Conselho Constitucional de Moçambique declarou, em junho, que o empréstimo e as garantias estatais de 726,5 milhões de dólares à empresa EMATUM eram nulos. E agora o Ministério Público (MP) dá sinais de querer agir contra os funcionários que violaram a lei.
Como os contratos foram considerados ilegais, a Procuradoria pondera "entrar com uma ação cível […] no sentido de responsabilizar aqueles que os celebraram", afirmou na terça-feira (09.07) o procurador-geral adjunto Ângelo Matusse.
A DW África entrevistou Baltazar Fael a propósito destas declarações. O investigador do Centro de Integridade Pública (CIP) de Moçambique saúda a intenção, mas ressalva que é preciso esperar para ver se, depois das eleições de 15 de outubro, a postura do MP em relação ao caso das dívidas ocultas continuará como até aqui.
DW África: O Ministério Público fala na possibilidade de uma "ação cível de regresso" para exigir a recuperação dos valores das dívidas. Até que ponto isto é realista?
Baltazar Fael (BF): Penso que é preciso fixar limites aqui, porque não há dúvidas de que a própria acusação que o Ministério Público fez contra alguns servidores públicos, e outros não, não chega aos dois mil milhões de dólares. Então, dificilmente esse valor todo será recuperado, mesmo nesta ação cível. O que nós achamos é que o Ministério Público está neste momento a fazer aquilo que começou a fazer desde que [o ex-ministro das Finanças] Manuel Chang foi detido na África do Sul, que é encetar ações que já deviam ter sido levadas a cabo há muito tempo. Mas, como se costuma dizer na gíria [popular], mais vale tarde do que nunca.
DW África: Será que estas declarações do Ministério Público serão apenas fogo de vista ou haverá, de facto, a intenção do Ministério Público de avançar com o caso?
BF: Claramente, o timing em que o Ministério Público está a agir - e pelas ações que está a tomar neste momento - pode ser confundido com o facto de as eleições se estarem a aproximar. O que penso que é importante é vermos, de facto, até que ponto o Ministério Público vai propôr essas ações, porque não acredito que [o consiga fazer] este ano, pela complexidade do processo. Então, vamos avaliar, depois das eleições se, de facto, o Ministério Público continua com esta mesma ação enérgica, que está a ter neste momento em que estamos próximos das eleições. A partir daí, vamos tirar as ilações se eram manobras eleitoralistas ou não. Neste momento, penso que temos de deixar, de alguma forma, que o processo vá decorrendo e depois podemos avaliar mais adiante se, de facto, há uma ação genuína no sentido de esclarecer este caso.
DW África: Será que os moçambicanos podem ter esperança de que o dinheiro vai ser recuperado?
BF: Como se costuma dizer, a esperança é a última coisa a morrer. E nós moçambicanos estamos à espera não só de que o dinheiro seja recuperado, mas que este caso seja esclarecido e que, a partir de agora, sejam tomadas medidas para evitar que situações dessas voltem a ocorrer. O Estado já prevê um regulamento, um decreto, que de alguma forma cria novas medidas conducentes à contratação das dívidas, que tornam um pouco mais difícil que simples funcionários ligados às Finanças do país possam, de alguma forma, contrair dívidas e que depois ninguém saiba o que está a acontecer.
Dívidas ocultas: Declarações do MP são fogo de vista?
DW África: Será que, neste caso, o Ministério Público deveria cooperar com outros países para conseguir recuperar este dinheiro?
BF: Sem dúvida alguma. É um crime transnacional, que envolveu várias jurisdições. O que está inscrito na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção é que os Estados signatários da convenção podem cooperar com vista ao esclarecimento de matéria criminal. Então, neste processo, é dever do Ministério Público cooperar com os Estados que, na sua maioria, também são signatários desta convenção, com vista à recuperação desses ativos.
Moçambique: O abecedário das dívidas ocultas
A auditoria independente de 2017 às dívidas ocultas não revela nomes. As letras do abecedário foram usadas para os substituir. Mas pelas funções chega-se aos possíveis nomes. Apresentamos parte deles e as suas ações.
Foto: Fotolia/Africa Studio
Indivíduo "A"
Supõe-se que Carlos Rosário seja o indivíduo "A" do relatório da Kroll. Na altura um alto quadro da secreta moçambicana que se teria recusado a fornecer as informações solicitadas pelos auditores da Kroll alegando que eram "confidenciais" e não estavam disponíveis. Rosário foi detido em meados de fevereiro no âmbito das dívidas ocultas. Há inconsistências nas informações fornecidas pelo indivíduo.
Foto: L. Meneses
Indivíduo "B"
Andrew Pearse é ex-diretor do banco Credit Suisse, um dos dois bancos que concedeu os empréstimos. No relatório da Kroll é apontado como um dos envolvidos nos contratos de empréstimos originais entre a ProIndicus e o Credit Suisse. De acordo com a justiça dos EUA, terá recebido, juntamente com outros dois ex-colegas, mais de 50 milhões de dólares em subornos e comissões irregulares.
Foto: dw
Indivíduo "C"
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças, assinou as garantias de empréstimo em nome do Governo moçambicano. Admitiu à auditoria que violou conscientemente as leis do orçamento ao aprovar as garantias para as empresas moçambicanas. Alega que funcionários do SISE convenceram-no a fazê-lo, alegando razões de segurança nacional. Hoje é acusado pela justiça dos EUA de ter cometido crimes financeiros.
Foto: Getty Images/AFP/W. de Wet
Indivíduo "D"
Maria Isaltina de Sales Lucas, na altura diretora nacional do Tesouro, terá coadjuvado o ministro das Finanças Manuel Chang, ou indivíduo "C", na arquitetura das dívidas ocultas. No Governo de Filipe Nyusi foi vice-ministra da Economia e Finanças, mas exonerada em fevereiro de 2019. Segundo o relatório, terá recebido 95 mil dólares pelo seu papel entre agosto de 2013 e julho de 2014 pela Ematum.
Foto: P. Manjate
Indivíduo "E"
Gregório Leão foi o número um do SISE, os Serviços de Informação e Segurança do Estado. O seu nome é apontado no relatório da Kroll e foi detido em fevereiro passado em conexão com o caso das dívidas ocultas.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "F"
Acredita-se que Lagos Lidimo, diretor do SISE, Serviços de Informação e Segurança do Estado, desde janeiro de 2017, seja o indivíduo "F". Substituiu Gregório Leão, o indivíduo "E". Na altura disse que não tinha recebido "qualquer registo relacionado as empresas de Moçambique desde que assumiu o cargo." A ONG CIP acredita que assumiu essa posição para proteger Filipe Nyusi, hoje chefe de Estado.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "K"
Salvador Ntumuke é ministro da Defesa desde de 2015. Diz que não recebeu qualquer registo relacionado com as empresas moçambicanas desde que assumiu o cargo. O relatório da Kroll diz que informações fornecidas pelo Ministério da Defesa, Ematum e a fornecedores de material militar não coincidem. Em jogo estariam 500 milhões de dólares. O ministro garante que não recebeu dinheiro nem equipamento.
Foto: Ferhat Momad
Indivíduo "L"
Víctor Bernardo foi vice-ministro da Planificação e Desenvolvimento no Governo de Armando Guebuza. E na qualidade de presidente do conselho de administração da ProIndicus, terá assinado os termos e condições financeiras para a contratação do primeiro empréstimo da ProIndicus ao banco Credit Suisse, juntamente com Maria Isaltina de Sales Lucas.
Foto: Ferhat Momade
Indivíduo "R"
Alberto Ricardo Mondlane, ex-ministro do Interior, terá assinado em nome do Estado o contrato de concessão da ProIndicus, juntamente com Nyusi, Chang e Rosário. Um email citado pela justiça dos EUA deixa a entender que titulares de alguns ministérios moçambicanos envolvidos no caso, entre eles o do Interior, iriam querer a sua "fatia de bolo" enquanto estivessem no Governo.
Foto: DW/B . Jaquete
Indivíduo "Q"
Filipe Nyusi, na altura ministro da Defesa, seria identificado como indivíduo "Q" no relatório. Uma carta publicada em 2019 pela imprensa moçambicana revela que Nyusi terá instruído os responsáveis da Ematum, MAM e ProIndicus a fazerem o empréstimo. Afinal, parte dessas empresas estavam sob tutela do seu ministério. Hoje Presidente da República, Nyusi nunca esclareceu a sua participação no caso.
Foto: picture-alliance/Anadolu Agency/M. Yalcin
Indivíduo "U"
Supõe-se que Ernesto Gove, ex-governador do Banco de Moçambique, seja o indivíduo "U". Terá sido uma das entidades que autorizou a contração dos empréstimos. E neste contexto, em abril de 2019 foi constituído arguido no processo judicial sobre as dívidas ocultas. Entretanto, em 2016 Gove terá dito que não tinha conhecimento do caso das dívidas. (galeria em atualização)