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Era uma vez Kung Fu e a sua família cooperante

22 de agosto de 2024

Um ex-ministro, uma filha, um genro e uma esposa falecida têm os nomes associados às tramas por detrás das dívidas ocultas. Manuel Chang foi condenado nos EUA por conspiração para fraude e lavagem de dinheiro.

Ex-ministro moçambicano das Finanças, Manuel Chang
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças de Moçambique, foi condenado nos Estados Unidos por fraude e lavagem de dinheiro.Foto: Reuters/S. Tassiem

Durante o julgamento nos EUA foi citado o nome da filha de Chang, Manuela, a quem teria sido pedido para que abrisse contas no Líbano. Dias depois, o pai viabilizaria um dos negócios das dívidas ocultas. O nome do genro de Chang, com interesses no setor imobiliário, também foi citado no tribunal. E, no caso, terá ainda havido rios de vinho à mistura.

Familiares ausentes

O ex-ministro das Finanças de Moçambique não contou com o apoio moral dos seus familiares no tribunal de Brooklyn nos Estados Unidos, relatou Borges Nhamire, investigador do Centro de Integridade Pública (CIP), que acompanhou o julgamento. Apesar do vazio afetivo, Manuel Chang não se pode queixar da defesa, contou com uma renomada e caríssima equipa. Será que os familiares de Chang não terão estado em Nova York por receio?

"Em qualquer processo-crime, há surpresas. E pode também ter sido aconselhamento do próprio arguido, que tenha dito aos familiares para não se fazerem presentes, tendo em conta que em algum momento poderiam ser recolhidos as celas", cogita o jurista Victor da Fonseca.

Já diz o ditado, "gato escaldado de água fria tem medo". Terá sido isso? O ex-ministro também não imaginava que seria detido na África do Sul a pedido da Justiça norte-americana, em 2018, quando supostamente viajava em lazer. 

Durante o julgamento de Chang, o tribunal citou como envolvidos no crime financeiro a falecida esposa do ex-ministro, Lisette, a sua filha Manuela e o genro Ingilo Dalsuco. Bastaria isso para chamar os familiares de Chang à barra do tribunal nos EUA?

"Neste momento, os Estados Unidos não são competentes para chamar essas pessoas e responsabilizar criminalmente ou civilmente. Quem pode fazer isto, pela questão da lei penal e o lugar da prática atualmente, é Moçambique, porque a esposa e o genro não foram transacionar nenhuma moeda nos Estados Unidos", argumenta Fonseca

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De acordo com o tribunal, Manuela Chang terá viajado para o Líbano por cerca de três dias para abrir duas contas, pouco antes de o pai ter dado "luz verde" a uma garantia de 900 milhões de dólares para o negócio da Proindicus, em que estava envolvida a empresa naval Privinvest, sediada em Beirute.

Fonseca desqualifica o peso da suposta cumplicidade entre pai e filha para o processo no tribunal de Nova Iorque. Já em Moçambique, se a Justiça funcionasse, a filha de Kung Fu poderia ser responsabilizada.

"Se ela tinha conhecimento prévio daquilo que o pai pretendia fazer com a conta dela, se foi informada para quem visava o valor, se isto acontecer cá e houver uma ação contra Manuel Chang em Moçambique, ela pode responder por crime de receptação", explica o jurista, salientando que a moldura penal varia de um a oito anos de prisão, além do pagamento de multa para este tipo de crime.

Negócios imobiliários

Boa parte dos investimentos da família são no imobiliário, setor que mereceu atenção do marido de Manuela Chang, Ingilo Dalsuco. O genro de Chang teve uma participação na HD Imobiliária, junto com o ex-ministro dos Transportes, Gabriel Muthise, e o amigo fiel do sogro, o empresário Luís Brito. Dalsuco é conhecido pelo extenso património imobiliário que possui em Inhambane. 

Entretanto, nos últimos tempos tem se estado a desfazer de alguns desses bens, vendendo-os ao Estado. A mais recente venda do edifício que serve a Procuradoria Provincial de Inhambane indignou os defensores da integridade. Como um órgão que o deve investigar compra um bem suspeito a um indivíduo que pode estar envolvido num crime de lavagem de dinheiro? 

Fonseca estranha a transação e defende que, além de investigar o próprio genro, é preciso saber há quanto tempo ele tem este património, "como conseguiu construir e vender uma casa que naturalmente foi uma polémica ao nível da província [de Inhambane], que está a servir como [sede da] procuradoria distrital". Para o jurista, isto mais uma vez preocupa os moçambicanos, mas a Justiça "está impávida em relação a estas figuras todas".

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A transação, entretanto, é vista de diferentes perspetivas. É que Dalsuco, antes de ser genro de Kung Fu, já era um destacado empresário no setor imobiliário na sua província. Colar simplesmente o seu património ao dinheiro sujo do sogro resultaria em inverdade. 

Nesse sentido, Job Fazenda alerta para a necessidade de separar o trigo do joio. Para o jurista, se o Estado queria um edifício e ele tinha-o a venda, [ingressou] num campo "muito cinzento". Para Fazenda, "fica difícil dizer que foi tudo com objetivo de fazer corrupção".

"Eles supostamente tinham dinheiro, têm recursos e infraestruturas que o Estado precisa. Não me parece que ele tenha vendido o edifício apenas como um ato de corrupção. Estaríamos a dizer que tudo o que fazem tem natureza criminosa, acredito que não é bem assim", acrescenta.

Venda controversa

Outro aspeto curioso mencionado no tribunal norte-americano foi o alegado envio de mais de mil garrafas de vinho rosé, tinto, azeite e mel à falecida esposa de Chang, Lisette, em setembro de 2013. A encomenda seria para o ex-ministro. O tribunal tomou a suposta prenda como evidência do envolvimento de Kung Fu no crime financeiro. Seria muito vinho para uma família que, a partida, não comercializa o produto.

"Tratava-se provavelmente de algumas caixas que traziam dólares", refere o jurista Fonseca.

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Quanto ao suposto envolvimento dos parentes do ex-ministro Chang, Job Fazenda entende que poderia haver consciência do significado custo-benefício. "Sendo maiores de idade, não podemos dizer que tenham sido forçados a ir por aí", explica.

Para o jurista, "eles  tiravam vantagens disso, tanto que até hoje continuam a tirar. Chang está preso mas quem continua a usufruir são eles. Acho que tem a ver com confiança, são as pessoas em que ele confiava para gerir os seus negócios".

Seria "quase natural", comenta Fazenda. "Numa situação dessas, muitas vezes os visados têm por tendência envolver-se com familiares ou um amigo de extrema confiança, senão corre o risco de perder o património. Também serve para manter a informação muito bem fechada no seio familiar".

Desde que o caso das dívidas ocultas foi tornado público, em 2016, a família do ex-ministro das Finanças nunca se pronunciou sobre o assunto. 

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