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Era uma vez Kung Fu e o duro contragolpe norte-americano

27 de agosto de 2024

A Justiça dos EUA foi implacável: caçou, julgou e prendeu o ex-ministro Manuel Chang por ferir o seu sistema financeiro e ludibriar investidores. Mas é Moçambique que pode vir a ter de devolver o dinheiro aos americanos.

Manuel Chang, ex-ministro das Finanças de Moçambique, em tribunal
Manuel Chang, ex-ministro das Finanças de Moçambique, foi condenado nos EUA por fraude e lavagem de dinheiroFoto: Getty Images/AFP/W. de Wet

Um tribunal nos EUA considerou que Manuel Chang, ex-ministro das Finanças de Moçambique, conspirou para lavagem de dinheiro, feriu o sistema financeiro norte-americano e ludibriou cidadãos do país. 

Porém, é o Estado moçambicano que pode vir a ter de devolver todo o dinheiro do suposto "engodo" aos investidores norte-americanos. Afinal, o Governo moçambicano já pagou, pelo menos, parte da dívida da Ematum, a isca usada pelos conspiradores para os atrair.

Há quem fale de métodos coercivos para recuperar o dinheiro, mas há também quem coloque ressalvas, baseadas em princípios legais.

Conspiração em Manhatan

Não foi por acaso que o Governo norte-americano julgou o caso de Kung Fu no distrito de Manhattan. De acordo com a acusação norte-americana, certos atos da conspiração que envolveram o ex-ministro moçambicano aconteceram justamente neste distrito.

Manuel Chang terá golpeado grosseiramente a legislação financeira da considerada potência mundial, para além de supostamente ter lesado cidadãos norte-americanos. O ex-ministro das Finanças de Moçambique foi condenado e paga agora o preço com a prisão, provavelmente porque não há crime perfeito ou talvez porque, nos EUA, a Justiça não é uma palavra oca.

Andre Thomashausen aponta o arresto como uma saída para recuperar dinheiro de cidadãos americanosFoto: Privat

Mas as partes lesadas, que devem estar em celebração com a sua condenação, ainda poderão transpirar para que no final soltem, de facto, foguetes.

O especialista em direito internacional Andre Thomashausen fala do que pode acontecer depois da condenação do dia 8 de agosto. "Os investidores americanos que ficaram lesados e compraram títulos de tesouro, que depois acabaram por não ter valor, vão ficar satisfeitos com a condenação de pelos menos uma pessoa central nessa burla e possivelmente poderão tentar um processo de indemnização civil, para tentar recuperar os seus danos", considera.

O caso das "dívidas ocultas" remonta a 2013 e 2014, quando Manuel Chang aprovou, à revelia do Parlamento, garantias estatais sobre os empréstimos da Proindicus, Ematum e MAM aos bancos Credit Suisse e VTB.

Subornos depositados nos EUA

Embora a acusação norte-americana reconheça que o crime não teve o seu embrião nas terras do tio Sam, ela entende que todo o valor dos empréstimos, mais de 2 mil milhões de dólares, às três empresas envolvidas (Ematum, MAM e Proindicus) passou por bancos de Nova Iorque, incluindo o Bank of New York Mellon.

Também o réu terá feito questão que a sua parte do alegado suborno fosse depositada no banco Barclays em Nova Iorque.

Por regra, quando se transaciona o dólar norte-americano a partir do exterior, o dinheiro deve passar por bancos correspondentes nos EUA. Esses bancos terão sido uma das caudas de fora que terão permitido aos EUA acusar Kung Fu de fraude eletrónica e conspiração para lavagem de dinheiro, um contragolpe com que Manuel Chang provavelmente não contava ou terá marginalizado.

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Kung Fu também foi acusado de ter mentido aos investidores norte-americanos. A VTB Capital Nova Iorque, Jason Kaplan, da NWI Management, e Marcus Santamaria, da AllianceBernstein, terão sido ludibriados por Kung Fu e seus comparsas, de acordo com a acusação.

Kaplan, que investiu 70 milhões de dólares na Ematum e terá perdido três, admitiu que a sua empresa continuou a comprar títulos de Moçambique até junho de 2018, dois anos depois de terem sido emitidos sinais de alerta a nível internacional sobre a dívida. O gestor alega que confiou na linguagem anticorrupção do contrato.

Os investidores sublinharam que era condição sine qua non ter garantias do Estado moçambicano para que entrassem no negócio. Assim, seriam recompensados pelo Estado, caso a Ematum afundasse, calculou a AllianceBernstein. Com base neste voto de confiança, a empresa terá perdido 22 milhões de dólares na fraude encabeçada alegadamente por Chang.

Nestes investimentos estariam envolvidos milhões de dólares, inclusive em planos de reformas e de pensões e empresas de seguros com dinheiro de cidadãos norte-americanos. Alguns desses fundos incluiriam reformas dos professores do Louisiana.

Arresto como saída para recuperar dinheiro?

O analista alemão Thomashausen aponta o arresto como uma possível saída para recuperar esse dinheiro: "Nesse caso, teria de ser um processo contra o Estado [moçambicano] e poderá passar pelo arresto de propriedades e bens do Estado de Moçambique, situados lá nos EUA, inclusive crédito nas contas bancárias."

Por exemplo, explica o especialista, "pagamentos devidos a Moçambique a partir do Banco Mundial ou do FMI poderiam teoricamente ser congelados. Para um tal processo, seria absolutamente necessário as partes lesadas terem prova de que não se trata de uma atividade criminosa de um indivíduo, mas de uma conspiração sustentada pelos responsáveis do país na altura".

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Porém, em Moçambique há o entendimento de que essa hipótese esteja fora de questão. O jurista Job Fazenda aponta um princípio que impediria tal arresto: "Duvido muito que um crédito concedido por um Banco Mundial ao Estado moçambicano seja tomado. Não me parece que ele entre nessas formas de atuação, porque o dinheiro só se considera entregue a Moçambique quando ele estiver na conta única do tesouro, no Banco de Moçambique. Até lá, não estou a ver possibilidade de ser intercetado a meio do caminho".

As dívidas da Ematum

Entretanto, em meados de 2019, o Conselho Constitucional declarou as dívidas da Ematum inconstitucionais e anulou as garantias do Estado. Surpreendentemente, poucos meses depois, o governo desrespeitou a decisão do Constitucional e pagou a primeira tranche da dívida da Ematum. A sociedade civil moçambicana suspeitou da reviravolta.

É que na altura, um dos acusados no processo norte-americano, Jean Boustani, negociador da Privinvest, estava a apoiar-se no facto de o Governo estar a reestruturar as dívidas para defender que não houve conspiração para defraudar os investidores que compraram os títulos de crédito da Ematum - afinal, tudo seguia de acordo com trâmites legais e Moçambique estava a pagar os empréstimos.

É com base neste imbróglio que o jurista Job Fazenda entende que, se tratando da Ematum, o reembolso da dívida ou uma possível indemnização pode ser feita sem recorrer a métodos coercivos.

"A PGR sempre veio dizer que as garantias são ilegais de tal sorte que as dívidas, com base na decisão de Londres, está numa situação de não ser necessariamente do Estado, com a exceção daquela da Ematum que foi assumida pelo Estado. Então, o Estado está a fazer de tudo para poder garantir o pagamento dessa dívida, por isso é que pediu indemnização junto da Privinvest para poder ter a provisão e poder pagar a dívida", explica.

O contragolpe dos EUA contra Kung Fu foi certamente uma lição aos que um dia cogitaram seguir as pegadas do sino-moçambicano.